DECRETO N. 611 - DE 31 DE JULHO DE 1890

Concede autorização á Companhia Ceres Paulista para organizar-se.

O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brasil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, attendendo ao que requereu a Companhia Ceres Paulista, resolve conceder-lhe autorização para organizar-se com os estatutos que apresentou; não podendo, porém, constituir-se definitivamente sem preencher as formalidades do art. 3º do decreto n. 164 de 17 de janeiro do corrente anno.

O Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas assim o faça executar.

Sala das sessões do Governo Provisorio 31 de julho de 1890, 2º da Republica.

MANOEL Deodoro DA FONSECA.

Francisco Glicerio.

Estatutos da Companhia Ceres Paulista

TITULO I

DA COMPANHIA, SUA SÉDE, PRAZO DE DURAÇÃO E CAPITAL

Art. 1º A Companhia Ceres Paulista é uma sociedade anonyma commercial e agricola para os fins e operações designados no titulo 2º destes estatutos.

Art. 2º Sua séde, fóro juridico e administração, serão para todos os effeitos de direito, nesta cidade.

Art. 3º O prazo de sua duração será de 30 annos contados da data da sua formação; poderá, porém, ser prorogado, por deliberação da assembléa geral de accionistas.

Não poderá liquidar-se ou dissolver-se antes de findo esse prazo sem que se verifique alguma das hypotheses previstas na legislação geral.

Art. 4º Seu capital é de mil contos divididos em dez mil acções no valor de cem mil réis cada uma e poderá ser elevado por deliberação dos accionistas, os quaes, nesse caso, terão preferencia ás acções na proporção das que já possuirem.

Art. 5º O capital será realizado em prestações, sendo a primeira de 10% no acto da assignatura dos estatutos; a segunda, tambem de 10% depois de constituida a companhia; e as restantes em intervallos nunca menores de sessenta dias e não excederá cada uma de 20%.

Art. 6º O accionista que não effectuar as entradas no prazo marcado pela directoria e as realizar dentro de trinta dias subsequentes, incorrerá na multa de um por cento sobre a prestação retardada.

O que exceder este prazo será compellido a effectual-as na conformidade do direito, salvo si a directoria entender que devam cahir em commisso as respectivas acções, levando-se então á conta de fundo de reserva as entradas realizadas.

Será, porém, relevada a pena de commisso, si o accionista provar, a contento da directoria, algum caso de força maior; mas, nesse caso, pagará o juro de um por cento ao mez pelas entradas em móra.

As acções que cahirem em commisso definitivo poderão ser reemittidas.

Art. 7º A companhia poderá estabelecer agencias onde lhe for conveniente.

TITULO II

DOS FINS E OPERAÇÕES DA COMPANHIA

Art. 8º Os fins da companhia são:

a) Commerciar sobre todos os generos de consumo, principalmente sobre os de pequena lavoura;

b) Utilisar as terras apropriadas á producção desses generos, fomentando a pequena lavoura e a cultura intensiva.

Art. 9º Para a obtenção desses fins fará a companhia as seguintes operações:

a) De comprar, para revender, todos os productos destinados ao consumo mediato e immediato, quer sejam do Estado, quer de outro qualquer ponto da Republica;

b) Importal-os e exportal-os para os paizes estrangeiros ou para qualquer ponto do paiz;

c) Recebel-os á consignação para revendel-os por conta de terceiros, mediante commissão;

d) Acceital-os em pagamento de obrigações contrahidas para com a companhia;

e) Adquirir, por compra ou arrendamento temporario ou perpetuo terras conhecidamente aptas para a cultura intensiva, especialmente as que ficarem proximas á capital, em seus arredores ou nos municipios vizinhos do norte do Estado;

f) Cultivar, por sua conta, as terras adquiridas ou revendel-as e arrendal-as aos pequenos cultivadores nacionaes ou estrangeiros, preferindo aquelles que se propuzerem a introduzir novas culturas, podendo a transferencia ou arrendamento ser feito em lotes, á vista ou a prazo, em moeda corrente ou em prestação de generos que os adquirentes tiverem por fim produzir;

g) Requerer ao Governo do Estado, dos municipios ou da União, a titulo oneroso ou gratuito, a acquisição de terras devolutas aptas para a producção de cereaes, para os fins consignados na lettra f, obrigando-se a companhia a registral-as e inscrevel-as conforme o processo da lei «Torrerns».

Art. 10. As terras pertencentes á companhia poderão ser vendidas ou arrendadas a associações de pequenos lavradores nacionaes ou estrangeiros que se reunirem sob a forma de cooperativas de producção ou sob qualquer outra estabelecida na legislação patria.

Art. 11. Para a realização de suas operações commerciaes e para o augmento de suas transacções, terá a companhia, além de seus correspondentes no paiz, iguaes correspondentes no estrangeiro, nos pontos onde a directoria julgar mais conveniente.

Art. 12. Poderá tambem a companhia fornecer ás repartições publicas, mediante contracto com o Governo do Estado ou da União, viveres ou quaesquer outros artigos de consumo directo e indirecto, nos termos e condições que a sua administração julgar convenientes.

Art. 13. Em compensação ás concessões gratuitas de terras para pequena lavoura que forem feitas pelo Governo do Estado, dos municipios ou da União, a companhia se obrigará a distribuir gratuitamente um certo numero de lotes a trabalhadores nacionaes ou estrangeiros que se proponham a introduzir alguma cultura nova no paiz, mas de resultados conhecidos em outros paizes; sendo as despezas de transporte por mar e pelas estradas de ferro desses trabalhadores por conta da companhia.

Nesse caso, poderá tambem a administração da companhia convencionar com os respectivos Governos as clausulas e condições necessarias para garantia dos contractos.

Art. 14. A companhia se obrigará outrosim, no caso de alguma grande crise alimenticia em qualquer parte da Republica, a fornecer gratuitamente provisão de viveres e de outros artigos de consumo de primeira necessidade nos limites determinados por sua administração.

Art. 15. Poderá, outrosim, a companhia effectuar, logo que pela directoria for julgado conveniente, operações bancarias para emprestimos sobre penhor de fructos pendentes da pequena lavoura e da cultura intensiva ou mesmo para adeantamento de dinheiro a lavradores mediante garantia de generos de consumo, ou de quaesquer productos agricolas que lhe forem consignados á venda.

Nesse caso, creará a directoria o pessoal para esse serviço, sendo o numero dos empregados o restrictamente necessario e augmentando-se o capital social.

TITULO III

DA ADMINISTRAÇÃO DA COMPANHIA

Art. 16. A administração da companhia será composta de tres directores, um gerente e um sub-gerente, sendo aquelles eleitos pelos accionistas e estes nomeados pela directoria. O presidente da directoria será tambem de eleição dos accionistas.

Art. 17. A eleição dos directores, presidente e mais funccionarios será feita por escrutinio secreto e por maioria de votos.

Seu mandato durará cinco annos, e poderá ser renovado.

O presidente perceberá o vencimento de oito contos por anno, e os directores, de seis contos pagos mensalmente.

Art. 18. Para exercer o cargo de director, é preciso ser accionista pelo menos de cincoenta acções.

Estas acções serão depositadas nos cofres da companhia e escripturadas como caução pelos actos da gestão e não poderão ser alienadas emquanto não forem approvadas pela assembléa geral as contas daquellas que tiverem exercido aquelle cargo.

Art. 19. E' incompativel o cargo de director entre accionistas que forem sogro e genro, cunhados durante o cunhadio, parentes consanguineos atá ao segundo gráo, não podendo tambem ser eleitos para tal os impedidos de negociar, na fórma do Codigo Commercial.

Art. 20. Quando, por motivo de fallecimento, impedimento legal ou resignação do cargo, se verificar alguma falta de director, a directoria poderá preenchel-a nomeando um accionista em condições de elegibilidade. O mandato do nomeado durará unicamente até á primeira reunião da assembléa geral ordinaria.

Si, por motivo justificado ou por ausencia em serviço da companhia, qualquer director não puder comparecer, a directoria nomeará da mesma fórma um accionista nas condições mencionadas, cessando o mandato desde quando o impedido ou ausente se apresentar.

Art. 21. Si algum director, sem causa justificada, deixar de exercer o seu cargo, por tempo excedente a seis mezes, entender-se-ha haver resignado o logar, e este poderá ser preenchido conforme o disposto na primeira parte do artigo antecedente.

Art. 22. São attribuições e deveres da directoria:

a) Resolver sobre a fundação de agencias, determinando a natureza e os limites das operações que devem effectuar;

b) Nomear e demittir empregados da companhia inclusive os das agencias, marcando-lhes vencimentos e fazendo com elles todos os contractos que forem necessarios;

c) Tomar conhecimento das transacções, examinar os balanços mensaes e semestraes, e proceder a qualquer averiguação que julgar conveniente;

d) Fixar o dividendo que tiver de ser distribuido semestralmente.

Art. 23. As reuniões ordinarias da directoria terão logar semanalmente, e as extraordinarias quando o presidente as convocar; porém o presidente e mais um dos directores se reunirão diariamente para o serviço da administração, alternando-se semanalmente os dous directores no serviço diario.

De todas as reuniões será lavrada a respectiva acta confeccionada pelo empregado que for designado e assignada pelos directores presentes e pelo gerente.

Art. 24. São attribuições e deveres do presidente:

a) Executar e fazer executar os estatutos, as deliberações da directoria e da assembléa geral, e tomar conhecimento diario das operações da companhia;

b) Representar officialmente a companhia quer perante as autoridades administrativas, quer em juizo ou fóra delle, podendo para isso constituir advogado e procuradores;

c) Assignar os balanços e contractos que tiverem sido autorizados, titulos e papeis referentes ao serviço da companhia, com o gerente ou com o sub-gerente;

d) Convocar e presidir semanalmente as reuniões ordinarias da directoria, e as extraordinarias que julgar conveniente;

e) Organizar e apresentar á assembléa geral dos accionistas, nas reuniões ordinarias, o relatorio annual das operações da companhia, depois de approvados pela directoria;

f) O presidente será substituido, em seus impedimentos, pelo director mais velho dos effectivos.

TITULO IV

DO GERENTE E SUBGERENTE

Art. 25. A companhia terá um gerente e um sub-gerente, ambos de nomeação da directoria. Incumbe ao gerente, e na sua falta ao sub-gerente:

a) Dar expediente ao serviço diario dos negocios e operações da companhia, prestando contas nas reuniões semanaes á directoria ou todas as vezes que ella o exigir;

b) Assistir com voto consultivo as reuniões da directoria;

c) Exercer todas as attribuições que lhe forem delegadas pela directoria, dirigindo e fiscalizando todos os empregados da companhia e de suas agencias;

d) Propor a nomeação e demissão dos empregados da companhia.

TITULO V

DA ASSEMBLÉA GERAL

Art. 26. Poderão votar nas assembléas geraes todos os accionistas possuidores de dez acções para cima, dando cada grupo de dez acções direito a um voto. Os que possuirem numero menor poderão apenas tomar parte na discussão.

Art. 27. Suas reuniões serão presididas pelo presidente da companhia, que escolherá, dentre os accionistas presentes, o 1º e 2º secretarios para se completar a mesa. Suas deliberações serão tomadas per capita, podendo, porém, ser tomadas pela representação do capital, si o requererem um ou mais accionistas.

Art. 28. Compete á assembléa geral:

a) Julgar as contas annuaes da directoria;

b) Eleger, na fórma destes estatutos, a administração, o conselho fiscal e seus supplentes;

c) Solicitar da administração todos os esclarecimentos necessarios para bem firmar seu juizo sobre as transacções do anno;

d) Resolver qualquer proposta que lhe for apresentada.

TITULO VI

DO CONSELHO FISCAL

Art. 29. O conselho fiscal será composto de tres membros effectivos possuidores cada um de 50 acções pelo menos, e de outros tantos supplentes, todos eleitos annualmente pela assembléa geral ou pela acclamação. Seu mandato durará um anno, mas poderá ser renovado; reunir-se-ha ao menos uma vez por mez, e cada um dos seus membros receberá a gratificação de 1:800$ por anno, paga mensalmente, recebendo, porém, o presidente a de 2:400$000.

Art. 30. Os membros effectivos serão substituidos, no caso de renuncia ou vaga, pelos supplentes. A ordem da substituição será regulada pela votação, preferindo os que tiverem sido eleitos por maior numero de votos, e no caso de igualdade de votação, preferindo os que possuirem maior numero de acções.

Art. 31. Incumbe ao conselho fiscal:

a) Tomar conhecimento exacto do estado da companhia afim de emittir seu parecer sobre os negocios sociaes, sobre o balanço e contas da administração, o qual será publicado e annexado ao relatorio annual da directoria;

b) Assistir com voto consultivo ás sessões dá directoria todas as vezes que esta reclamar sua presença e consulta.

TITULO VII

DO FUNDO DE RESERVA E DIVIDENDOS

Art. 32. Dos lucros liquidos verificados em cada semestre será deduzida quantia não inferior a 5% para constituir o fundo de reserva. Este será convertido em titulos que offereçam solidez e garantia.

Art. 33. Da quantia destinada a ser distribuida como dividendo, si for ella excedente a 15%, o excesso será dividido em duas partes; uma poderá ser applicada á conta de integralização das acções a outra que será distribuida igualmente entre os incorporadores.

Logo que esteja integralizado o capital social, passará a quota destinada á integralização das acções a fazer parte dos dividendos, ou será levada á conta de lucros suspensos, conforme deliberar a directoria.

TITULO VIII

DISPOSIÇÕES FINAES E TRANSITORIAS

Art. 34. A companhia organizará, logo que for adquirindo terras por concessões gratuitas ou a titulo oneroso, na conformidade destes estatutos, uma secção especial denominada Secção de cadastro e estatistica, á qual incumbirá:

a) Proceder ao arrolamento e descripção das terras de que a companhia for proprietaria ou concessionaria, individualisação da área de cada sorte de terrenos, de sua collocação topographica, da qualidade do sólo, do nome e numero dos seus cultivadores, da cultura neste desenvolvida;

b) Colher todos os dados para sobre elles formar a estatistica da producção das terras, com a denominação de cada producto, descripção dos instrumentos aratorios e processos usados na fabricação dos mesmos productos; bem como fazer todo o serviço de divisão e demarcação, registro e inscripção de terras;

c) Enumerar por ordem chronologica os contractos que para a acquisição de terras houver celebrado a companhia, bem como quaesquer outros papeis a ellas referentes;

d) Organizar de certos em certos periodos exposições publicas dos productos da pequena lavoura e da cultura intensiva do Estado, as quaes serão feitas nesta cidade pelo modo e forma que a directoria designar;

e) Confeccionar um relatorio minucioso sobre todos os assumptos acima indicados, ajuntando-lhes todas e quaesquer outras informações que possam interessar ao desenvolvimento daquelles ramos da agricultura, o qual será publicado e distribuido a quem a directoria julgar conveniente.

Art. 35. A companhia poderá conferir premios aos expositores que melhores productos exhibirem, a juizo de um jury de exposição que pela directoria for, instituido, cabendo á directoria, outrosim, designar a qualidade dos premios.

Art. 36. Durante o primeiro quinquennio da companhia, a sua administração e conselho fiscal serão compostos dos seguintes cidadãos:

Directoria

Presidente da directoria, Dr. Paulo Egydio de Oliveira Carvalho.

Directores: Pedro Paulo Bittencourt e Dr. Jesuino Ubaldo Cardoso de Mello.

Conselho fiscal

Presidente do conselho fiscal, Dr. Ernesto Mariano da Silva Ramos.

Membros: Dr. Herminio Augusto Moreira Lemos e Dr. Joaquim Celidonio Gomes dos Reis.

Supplentes: Dr. Augusto Freire da Silva, major, Domingos Sertorio e Rodrigo Monteiro de Barros.

Art. 37. São incorporadores da companhia os seguintes cidadãos:

Dr. Luiz Pereira Barreto, lavrador.

A. Duffles & Comp., negociantes.

Dr. Paulo Egydio de Oliveira Carvalho, advogado.

Pedro Paulo Bittencourt, negociante.

Dr. Jesuino Ubaldo Cardoso de Mello, advogado.

Antenor de Azevedo, negociante.

S. Paulo, 16 de julho de 1890.

Os incorporadores

Dr. Luiz Pereira Barreto.

Paulo Egydio de Oliveira Carvalho.

Pedro Paulo Bittencourt.

Dr. Jesuino Ubaldo Cardoso de Mello.

A. Duffles & Comp.

Antenor de Azevedo.

Rio de Janeiro, 24 de julho de 1890.- Dr. Jesuino Ubaldo Cardoso de Mello.

Generalissimo. - Dentre os grandes problemas nacionaes, que, ha mais de um quarto de seculo, atravez de reiterados mallogros, aguardam até hoje solução, nenhum poz mais á prova o engenho dos nossos legisladores, dos nossos economistas, dos nossos homens de estado, sob o regimen extincto, do que o dos auxilios á lavoura.

AUXILIOS Á LAVOURA

Tambem nenhum foi mais explorado pela astucia dos partidos, que, nesta questão, como na do elemento servil, não cessaram de utilizar as necessidades da classe agricola e a sua boa fé, para lhe illaquear a credulidade, e captar-lhe os suffragios illudidos. Disso ainda tivemos exemplo colossal no derradeiro ministerio da monarchia, quando, para salval-a dos temporaes republicanos na eleição de 1889, se lançou as ondas agitadas, como oleo abonançador, o famoso emprestimo de cem mil contos rotulado como presente á lavoura sequiosa.

Ainda agora nos resôa aos ouvidos, entre os ultimos echos do imperio desmoronado, a declamação da propaganda ribombante, com que se divinizou o gabinete 7 de junho á custa dos meritos dessa operação esteril e desastrosa, cujos onus varias gerações terão de carregar, sem que nem a contemporanea lhe experimente beneficios. Com punho firme e habil na manipulação eleitoral, o governo empenhou logo oitenta e seis mil contos dessa quantia, distribuidos por varios estabelecimentos de credito, com o fim de se emprestarem á lavoura. Dessa importancia, por força dos contractos celebrados, alguns dos quaes deixaram manietada a administração publica ante os abusos a que era evidentemente occasionada essa combinação illusoria para o Estado e para a agricultura, tem-se consumido cerca de quarenta e seis mil contos. E com que resultado? Uma decepção, geral, queixas innumeraveis dos lavradores, accusações insistentes contra os bancos. E, si deixassemos aberto esse rombo no Thesouro, em quatro ou seis mezes se teria escoado a somma total representada pelos ajustes do ministerio Ouro Preto, sem que as circumstancias apresentassem a menor melhora.

De feito, os vicios desse systema, que o bom senso popular caracterizou desde os seus primeiros ensaios, averbando-o de auxilios á monarchia, e que, em boa parte, não passou de auxilios aos amigos, são organicos, são essenciaes e, portanto, irremediaveis. Elle entrega a lavoura à cobiça dos seus exploradores habituaes, tende naturalmente, pela pressão das relações entre o lavrador e os seus intermediarios, a empregar-se na liquidação das dividas antigas, a converter-se em auxilio ao commercio de commissões contra as fortunas arruinadas; acode apenas ás urgencias individuaes da parte decadente e incuravel da antiga cultura, sem propagar nutrição, que dê alimento á nova; não offerece estimulos á iniciativa industriosa dos que principiam; furta-se ás aspirações da pequena propriedade; affaga os protegidos da politica, ou da especulação; promove entre os proprietarios territoriaes esses habitos de indigencia aristocratica, que são a ruina do trabalho, destruindo na agricultura a independencia, a altivez civica, o espirito de confiança em si mesma, e transformando-a numa classe de postulantes fidalgos, emparelhada á dos pretendentes, a funcções officiaes. Em semelhante regimen muitas precisões individuaes poderiam achar pasto e conforto, muitas miserias particulares encontrar rehabilitação e fortuna. Mas a lavoura nacional não se levantaria, o principio da vida nova pela sciencia, pela instrucção, pela mutuação espontanea de serviços entre o trabalho e o capital não começaria a penetral-a, ainda quando todo o emprestimo Ouro Preto, muitas vezes multiplicado por si mesmo, se entornasse do Thesouro pelo vehiculo dos bancos favorecidos. Em nada lesa, pois, aos verdadeiros interesses da lavoura a medida que acabamos de adoptar, pondo termo a tão inuteis quão ruinosas liberalidades, e poupando á Fazenda Nacional não menos de 40.000:000$, já compromettidos nos contractos da situação transacta.

LEI DE 6 DE NOVEMBRO DE 1875

Não se poderia, entretanto, contestar que, na serie de experiencias tentadas para beneficiar a lavoura por actos do Estado, se haja concentrado algumas vezes boa somma de patriotismo, observação e criterio, procedendo-se sob inspirações sinceras; intelligentes e elevadas, fóra dos artificios da velha politica eleitoral. Na ordem dos esforços legislativos, que merecem essa honrosa qualificação, avulta o que se traduziu na lei de 6 de novembro de 1875.

Largos debates precederam essa resolução, nas duas camaras. A dos deputados constituiu, para estudar o assumpto, uma commissão especial, que, reunida á de fazenda, apresentou, na sessão de 20 de julho desse anno, laborioso parecer, onde se estudavam, sob cinco aspectos differentes, as necessidades da lavoura e os meios de prover ao seu melhoramento. O ultimo desses aspectos era a escassez de capitaes, que as duas commissões parlamentares pretendiam remediar, organizando, mediante auxilios do Estado, o credito territorial.

Com esse intuito suggeriam ellas dous alvitres:

Primeiro: Contractar-se um emprestimo no valor de 50.000:000$ (cujos juros o Estado pagaria ao mutuante), para os mutuar sem juros aos bancos de credito real, que se propuzessem a fazer emprestimos á lavoura, a juro nunca maior de 6 % e com a amortização de 2 a 4 %. Os bancos teriam capital equivalente ao que lhes ministrasse o Estado, e amortizariam annualmente parte do emprestimo contrahido.

Segundo: Garantir o juro addicional de 4 %, até ao limite desses 50.000:000$, aos bancos, que preferissem esse auxilio ao emprestimo sem juros, e proporcionassem á lavoura as mesmas vantagens.

As commissões inclinavam-se á primeira alternativa, por se lhes affigurar «a mais directa, prompta e efficaz para o levantamento de capitaes no estado actual de contracção do credito nas diversas praças do Imperio.» Todavia, consignavam, no projecto o segundo alvitre, que, «seria, talvez, em alguns casos, preferivel.»

Consagraram-se, pois, no plano da reforma, essas duas idéas, entre as quaes se deixava ao governo a opção, nestes termos:

«Art. 1º E' autorizado o governo a auxiliar com a metade do respectivo fundo, até ao maximum de 50.000:000$, os bancos de credito territorial, que facilitarem capitaes á propriedade immovel, a juro nunca excedente de 6 %, e amortização de 2 a 4%, calculada sobre o total da quantia originariamente fornecida aos mutuarios.

«§ 3º Poderá o governo, nos limites da sobredita quantia de 50.000:000$, garantir o juro addicional até 4 %, sobre o capital effectivamente empregado, aos estabelecimentos de credito territorial, que preferirem este auxilio ao emprestimo sem juro.»

Preponderou, portanto, naquella casa do parlamento, o erro, que quatorze annos mais tarde havia de reviver sob a politica do gabinete que enterrou o imperio: entregar gratuitamente aos bancos dezenas de milhares de contos, para que esses estabelecimentos os mutuassem com juro á agricultura. Mas essa grosseira enormidade, que a dictadura do ministerio 7 de junho regalvanizou, confiado na irresponsabilidade que lhe assegurava a mais insigne corrupção das urnas eleitoraes, foi encontrar barreira insuperavel no senado.

Nessa camara o projecto da outra passou por uma substituição radical, sob a iniciativa predominante do Visconde de Inhomirim, que, reprovando a idéa vencedora no ramo temporario do parlamento, abundou em considerações, de obvia opportunidade agora a proposito da deliberação, adoptada pelo Governo Provisorio, de não proseguir na execução dos contractos de auxilio nominal á lavoura.

«Em que consiste o proiecto da camara dos deputados?» perguntava esse financeiro. «Em favorecer o estabelecimento de um banco de hypothecas com o emprestimo de um capital de 50.000:000$, sem juros, ou com um donativo de 4 % da mesma quantia, si os accionistas preferissem este ao outro presente. Esta subvenção garantiria aos accionistas 12 %.

«Em breve seria absorvido o pequeno capital de 100.000:000$, incluidos os donativos do Governo, em emprestimos concedidas á lavoura das diversas provincias do Imperio.

«Isto feito e esgotado o capital, as directorias dos bancos teriam de fechar as portas, agradecidas á liberalidade do governo imperial, e iriam tomar ares, para voltar no fim dos semestres, afim de tratar do recebimento dos juros e pagamento dos dividendos.

«Quanto a letras hypothecarias, a lei nada exige. Nem os bancos teem interesse algum em emittil-as; porque, sendo difficil a negociação de taes letras, elles não as poderiam negociar sinão acima de 6 %, que é quanto recebem dos mutuarios; e então seria, preciso tirar a differença do seu proprio lucro, e o negocio não se tornaria bom para elles.

«Portanto, reduz-se o projecto a dar o Estado 50.000:000$ sem juros, para se tornar possivel a creação de um banco esteril, mesquinho, inefficaz, por falta de emissão. E' um banco da classe dos hypothecarios, porém de especie nova.»

No mesmo sentido se pronunciava, oito dias depois (sessão de 6 de outubro), o Barão de Cotegipe, qualificando como original o alvitre de «contrahir o governo um emprestimo, para fornecer fundos aos bancos sem vencimento de juro.»

Este systema, ponderava aquelle senador, ministro da fazenda a esse tempo, «embora pudesse trazer provisoriamente algum auxilio á lavoura, não dava solução completa ao problema, era inefficaz, e, de mais a mais, mui oneroso ao Thesouro. Era inefficaz; porque todos comprehendem, á primeira vista, que um capital de 50.000:000$, emprestado gratuitamente aos bancos, junto a outro igual, com que esses bancos houvessem entrado, ou, por outra, 100.000:000$, não era recurso sinão provisorio para o estado da agricultura no paiz.»

O projecto, accrescentava elle, «era onerosissimo ao Thesouro; porque havia o dispendio infallivel de uma quantia, que, calculando se em trinta annos a amortização do emprestimo, que o governo contrahisse a juro de 6 %, si a emissão do emprestimo fosse abaixo do par, andaria em 244.580:155$, a juros compostos accumulados de 6 em 6 annos; pois assim são elles pagos.»

Por estes algarismos se póde avaliar o sacrificio, a que veiu condemnar o paiz o emprestimo de 1889, considerando-se que este elevou ao duplo a somma, ante a qual recuava, em 1875, o ministerio conservador. O acto de 1889 foi, pois, apenas cópia ampliatoria do desacerto, alvitrado, mas refugado, em 1875.

Impugnando-o energicamente, enunciavam-se assim, em 23 de setembro, as commissões do senado:

«Insignificante, ou quasi nullo, seria o prestimo do banco hypothecario, que, na impossibilidade de negociar os titulos, e estender os recursos do credito, circumscrevesse suas operações na limitada esphera do seu fundo social em numerario, restringindo assim os seus serviços, diminuindo os seus lucros, difficultando a modicidade dos juros, e impossibilitando a amortização a longos prazos. Esse não seria o banco hypothecario, tal como os que florescem em algumas regiões da Europa, e cujas vantagens justamente se preconizam. Esses emprestam directamente o seu credito sob a fórma de letras, ou então emprestam o numerario, que representa o producto da renda dessas mesmas letras, por elles negociadas, servindo a maxima parte do capital social unicamente de fundo de garantia para as emissões.

«Operando unicamente com o seu proprio capital, os bancos assim delineados pelo projecto da camara dos deputados estariam acaso em proporção com as necessidades de credito, que se fazem sentir na lavoura em todos os pontos do imperio? Não seria uma protecção insufficiente inefficaz, incompleta, e que provavelmente faria esse primeiro manancial da nossa riqueza permanecer no mesmo estado de crise, depois de aggravar nessas finanças com o peso de um sacrifficio desnecessario? Por outro lado, os juros artificiaes, que o projecto promette, com violação da lei natural dos mercados, sómente serviriam como palliativos illusorios, sem attingir os fins, que se teem em vista. Outros são os meios, que conviria applicar, para superar as difficuldades, que rodeiam, na actualidade, este grave problema, sem ser preciso impor ao Estado enormes vexames, que aliás nem a propria lavoura reclama.»

Sob este pensamento as commissões communicaram novo caracter ao projecto, imprimindo-lhe, no art. 1º, modificações substanciaes, que assentavam o auxilio do Estado num systema de emissão de letras hypothecarias afiançadas pelo Thesouro:

«Art. 1º E' o governo autorizado a garantir os juros e amortização das letras hypothecarias emittidas por bancos de credito real, que se fundarem sobre o plano traçado na lei n 1237, de 24 de setembro de 1864.

«§ 1º A disposição deste artigo só é applicavel aos bancos, cujas emissões tiverem logar principalmente nas praças da Europa, e que emprestarem sobre a garantia de propriedades ruraes, a juro que não exceda de 7 % e com a amortização de 2 %.

«§ 4º A séde destes bancos será sempre no imperio, onde funccionará a sua directoria...

«§ 5º Competirá ao governo a nomeação do presidente da administração central....

«§ 6º O total do capital social dos bancos, por cujas emissões o Estado assumir a responsabilidade, não excederá de 40.000:000$000.

«§ 8º A duração destes bancos será de 40 annos.»

A discussão, na camara vitalicia, alterou o typo, em alguns elementos fundamentaes, ao plano traçado pelas suas commissões concentrando num só banco a organização, que o projecto distribuia por varios, circumscrevendo os privilegios alli estatuidos aos estabelecimentos cujas emissões se effectuassem exclusivamente nas praças européas, e submettendo a amortização, fixada em 2 % no projecto da outra camara, a uma escala variavel conforme a duracção dos emprestimos entre 5 e 30 annos. E dest'arte se gerou o decreto legislativo n. 2687, de 6 de novembro de 1875.

A espectativa da organização do credito hypothecario continuava, portanto, a fundar-se na cooperação do Estado pela garantia das letras emittidas.

Justificando-a, diziam as commissões de fazenda e agricultura, no senado:

«Por dous meios diversos póde operar-se esse concurso do Estado, para firmar a confiança no titulo: o primeiro consistiria em garantir elle o pagamento dos juros e da amortização das obrigações emittidas, exigindo, por sua vez, das companhias todas as seguranças capazes de resalvar a sua responsabilidade de quaesquer eventualidades sinistras.

«Garantindo o pagamento ao portador dos titulos, ficaria elle mesmo garantido com o valor total dos immoveis hypothecados, com o capital social convertido em titulos da duvida publica e com o fundo de reserva posto á sua disposição para aquelle.

«Esta responsabilidade, que nenhum onus traria comsigo, dar-lhe-hia o direito de ter a direcção suprema dos bancos, e fiscalizar todas as operações por meio dos seus agentes. Si em semelhante systema a segurança da letra é completa, com a intervenção de um fiador sempre solvavel, como é o governo, tambem este nada teria que receiar, achando-se defendido por uma triplice barreira de solidas garantias contra as causas ordinarias, que perturbam a marcha de taes estabelecimentos.

«O outro modo de protecção, que o Estado lhe pudera prestar, seria tomar cada anno, por conta do Thesouro, uma somma mais ou menos consideravel de letras hypothecarias, afim de favorecer a emissão, e animar com o seu exemplo todos quantos procuram emprego seguro para suas accumulações. Este expediente, que limita a responsabilidade do governo, e é tão economico como o precedente, pois o dispendio feito pelo Thesouro teria applicação rendosa, que o indemnizaria do onus de qualquer emprestimo, é, todavia, menos efficaz e menos energico, em seus effeitos, do que a garantia dos juros e amortização das obrigações hypothecarias. Sómente esta ultima medida conseguiria estabelecer uma vasta corrente de importação dos capitaes europeus para o imperio.»

CAPITAES ESTRANGEIROS

Com effeito, reflectiam as commissões, «não podendo por ora o Brazil encontrar em seu seio os elementos precisos, para dar impulso ás emissões dos bancos hypothecarios, as quaes constituem seus instrumentos fecundos de prosperidade, torna-se evidente que qualquer plano de organização sobre esta materia deve ter por bases a importação de capital estrangeiro e a emissão das obrigações hypothecarias nas praças ricas e populosas da Europa.

«Mas, para conseguir este desideratum, inspirando plena confiança nesses titulos, não basta a garantia dos bens immoveis e do capital social das companhias. E' ainda preciso que elle se fortifique, ante os olhos dos capitalistas, com o prestigio do credito do governo, unindo os seus aos interesses da companhia.»

Preconizando as vantagens inestimaveis das instituições destinadas a mobilizar o solo pelo moderno mecanismo do credito, o senado punha imprescindivelmente como clausulas supremas á exequibilidade desse progresso entre nós o recurso aos mercados estrangeiros, possibilitado pela garantia do erario nacional. «O principal merito dessas instituições», dizia elle, por orgão das commissões, cujas idéas abraçou, «derivando-se do grande desenvolvimento, que deve ter a emissão das suas letras hypothecarias, multiplicadas até ao decuplo do valor do seu fundo social, resulta em que ellas encontram insuperaveis difficuldades para se levantar e prosperar em paizes novos, onde os capitaes disponiveis são sempre escassos em relação ás variadas, e numerosas difficuldades das industrias e melhoramentos que os reclamam. Este é o caso, em que se acha o Brazil; e seria preciso fechar os olhos á luz de tantas experiencias recentes, para se espera bom exito da emissão de titulos hypothecarios em escala assaz vasta, que corresponda á magnitude dos fins, a que são applicados.»

Francisco Octaviano dizia:

«Dentro do paiz estamos todos de accordo em que fallecem os capitaes. Por conseguinte, que era essencial? Pôr em contacto com a lavoura brazileira as associações de credito da Europa.

«E o meio de conseguir isto qual poderia ser? O credito do governo. O governo vem, pois, aqui abonar o lavrador nacional junto ás associações de credito da Europa.

«E, como não seria um mecanismo facil entender-se o governo directamente com as associações da Europa, creou-se uma associação, que necessariamente tem de jogar com essas; creou-se uma associação, que, com o abono do governo, nos possa trazer capitaes para a lavoura.

«Desde que o sr. Nabuco de Araujo luctou, no parlamento, por conseguir a lei da reforma hypothecaria, era bem claro que se visava a creação dos estabelecimentos de credito real. Fez-se o ensaio com a prata de casa; o ensaio foi improductivo. Que se devia fazer, para completar o pensamento da lei de 1864? Procurar auxilio fóra do paiz, para que ella não seja apenas lei escripta, para que ella se realize.«(Annaes do senado, 1875, vol. VI, p. 32.)

E não houve, a tal respeito, opinião discrepante, dentro ou fóra das camaras.

MALLOGRO DESSA EXPECTATIVA

Não obstante, porém, o alto premio, com que se acenava á concurrencia dos capitaes estrangeiros, não obstante o offerecimento franco do credito do Estado a especulação européa, nunca se conseguiu a satisfação das esperanças postas pelo imperio no regimen creado pela lei de 1875. Dessa decepção dava conta ás camaras, em 1877, no seu relatorio, o ministro da fazenda, pugnando pela necessidade urgente de submetter-se o Estado a novos e ainda maiores sacrificios, quantos precisos fossem, para se traduzir em realidade o pensamento daquella tentativa.

«Logo que foi promulgada a lei n. 2687, de 6 de novembro de 1875, dirigi exemplares della ás nossas legações em França e Inglaterra, recommendando-lhes que dessem publicidade ás suas disposições, e prestassem as informações e esclarecimentos, que lhes, fossem solicitados por pessoas competentes, que se propuzessem fundar o estabelecimento de credito real de accordo com as disposições da mesma lei.

«Com effeito, os respectivos ministros apressaram-se em dar execução ao que lhes foi recommendado, e, sinto dizel-o, sómente os srs. Frémy e A. Laski, que tendo obtido, pelos decretos n. 5.219, de 1 de fevereiro de 1873, e n. 5554, de 7 de fevereiro de 1874, concessão para fundarem um estabelecimento de identica natureza, não o levaram a effeito, por lhes parecerem insufficientes as condições dos ditos decretos, apresentaram um memorial, a que veiu junto um importante trabalho, devido á penna do illustre escriptor o sr. Josseau, apontando varios inconvenientes, que, em sua opinião, se oppoem á fundação de um banco de credito territorial com as condições exigidas pela lei de 6 de novembro, e propondo algumas modificações, que alteram profundamente a mesma lei. Sujeitei o memorial e o trabalho do sr. Josseau ao exame da Secção de Fazenda do Conselho de Estado, cujo parecer ha de ser distribuido em avulso com aquelles documentos. Foi relator o sempre lembrado Visconde de Inhomirim, que tão conspicua parte tomou na discussão da citada lei; e é este o derradeiro fructo da sua vasta e cultivada intelligencia.

«Em Inglaterra, onde contavam encontrar capitaes para fundação do projectado banco, foi a lei recebida com certa repugnancia, mas sem formal reprovação.

«O principal inconveniente, que nella enxergaram alguns, foi a concurrencia, que as letras hypothecarias iriam fazer aos titulos de nossa divida externa.

«Todavia, esse inconveniente poderia ser sanado, si a emissão das letras hypothecarias fosse feita por um agente do governo e conforme o estado do mercado.

«Acredito que o retrahimento dos capitaes para todas as emprezas, durante o anno findo, em consequencia de prejuizos soffridos, e uma especie de estremecimento nas transacções commerciaes em quasi todos os Estados, coincidindo com a incerteza da paz na Europa, entraram por muito no resultado negativo, que alli teve a lei.

«Entretanto, a nossa lavoura pede e necessita auxilios. A colonização européa não lh'os dá, nem póde dar; ella creará, no futuro, novas fontes de producção; mas não amparará o que está creado, que cumpre conservar e augmentar. O braço escravo escassêa de dia em dia, e já não dista muito a epoca, em que elle deixará de ser instrumento de trabalho. E' especialmente para luctar com essa transformação que o lavrador precisa ser auxiliado. Um conjuncto de medidas reflectidas e executadas com perseverança ha de attenuar, si não remover, a crise, que todos preveem e temem.

«A fundação de estabelecimentos de credito real é o que deve merecer primazia. Si a lei votada é inexequivel, como parece ser, ao menos por algum tempo, cumpre adoptar outro systema, ainda que mais oneroso seja.»

IMPRATICABILIDADE DA LEI DE 1875

Um dos concessionarios a que se referia o Barão de Cotegipe, o sr. Frémy, occupava, em França, a alta situação financeira de presidente do Crédit Foncier. Mas, a despeito da sua eminente autoridade technica e do seu prestigio official, não lhe foi possivel reunir um grupo de capitalistas importantes, que assumissem o compromisso de fundar, neste paiz, um banco territorial. «Aprés un examen de la question», dizia o illustre banqueiro, na sua petição de 22 de dezembro ao governo imperial, «fondé sur notre expérience des institutions de crédit foncier, en France, en Allemagne et aux E'tats-Unis, nous ne nous sommes pas crus à même de présenter une demande au gouvernement brésilien, sans nous être au préalable assurés de ses intentions relativement á l'interprétation de quelques unes des dispositions de la nouvelle loi.» De facto, porém, não se tratava de interpretar a nova lei bancaria, mas de alteral-a em disposições de grande alcance.

A critica de Josseau, com effeito, exarada no memorial annexo ao requerimento Frémy, descobria não menos de seis obstaculos á satisfação dos designios do legislador brazileiro. Taes eram: a restricção da garantia ás hypothecas ruraes; a fixação da taxa dos juros em 7 %; a duração dos emprestimos, limitados entre cinco e trinta annos; a obrigação de crear succursaes, distribuindo entre ellas o capital social; a determinação da quota de reserva, com prescripção de um dividendo maximo; o prazo de quarenta annos estipulado á duração do banco.

Ouvido o Conselho de Estado, pela secção de fazenda, sendo relator o Visconde de Inhomirim, este combateu, na sua quasi totalidade, as objecções do autor do Tratado de Credito Territorial, e o ministerio parece que se conformou com as suas conclusões, apezar de rebatidas com vantagem, em alguns topicos, pelo Visconde do Rio Branco e pelo Marquez de S. Vicente.

O eminente economista predissera, no seu memorial inedito, que, a não se adoptarem no systema as correcções que elle alvitrara, o almejado instituto de credito territorial nunca se estabeleceria. «En resumé, si ces prescriptions sont maintenues, on ne saurait entreprendre de fonder une société de Crédit Foncier sérieuse et durable au Brésil. Il se peut que des spéculateurs offrent áu Governement d'opérer sur ces bases, espérant profiter des circonstances, tant qu'elles seront favorables. Mais viennent les crises et les temps difficiles, et l'édifice ainsi élevé s'ébranlera. Il faudra modifier le systeme, recourir á de nouvelles mesures législatives, sous peine de voir tout le fardeau de l'entreprise retomber á la charge du Gouvernement par sa garantie. Ne vautil pas mieux, dés ledébut, offrir á la banque les moyens d'établir son crédit, d'assurer la négociation de ses titres sur tous les marchés, et, tout en realisant des profits qui rendent la garantie du Gouvernement nominale, de faire des prêts á des conditions avantageuses aux emprunteurs? C'est lá le conseil que je donnerais au Gouvernement Brésilien.» Mas o governo brazileiro não deu ouvidos ao conselho, e o prognostico fatal verificou-se.

CONFIANÇA PERSISTENTE NO CREDITO HYPOTHECARIO

Comtudo, os homens, que, no Brazil, estudavam estes assumptos, não cessaram de voltar os olhos para o horisonte que nos rasgara a lei de 1875, enxergando sempre na organização do credito hypothecario um dos maiores elementos vitaes para a agricultura e, em geral, para a expansão economica das nossas forças.

Da persistencia dessa convicção deixou-nos vestigios o congresso agricola, reunido em 1878, por convocação do ministerio Sinimbú. «Convencido collaborador, como fui, da lei de 6 de novembro de 1875» dizia, perante elle, o presidente do conselho, «penso, ainda agora, que é no seu vasto plano, mais ou menos modificado, que possivel será encontrar a solução do problema do credito agricola territorial. Não presumo que a reforma da nossa legislação hypothecaria e algum systema de auxilios e instituições desta natureza, que sirvam a circumscripções limitadas, resolvam a questão. Taes instituições não poderiam acudir á necessidade da justa repartição do credito territorial por todas as zonas, e a solução seria ainda, por um lado, incompleta, além de desigual e odiosa. Ponto é, para mim, a salvo de contestação que não ha, no paiz, capitaes, com que se deva contar para esse mister. Ora, si os temos de pedir a estranhos, melhor será que, em vez de repetidas tentativas e operações successivas para a creação de pequenos bancos, se promova a fundação de um grande estabelecimento, que, estendendo os beneficios do credito territorial a todo o imperio, fomente a prosperidade geral, e não sómente a de algumas circumscripções.»

Nesta opinião insistia o sr. de Sinimbú, perante a camara quatriennal, em sessão de 10 de janeiro de 1879, accrescentando:

«A lei de 7 de novembro de 1875 foi muito estudada e discutida no senado. O sr. Visconde de Inhomirim, cuja morte deploro, o eminente parlamentar Zacarias de Goes e Vasconcellos, de sempre saudosa memoria, assim como outros membros daquella casa, foram accordes, pondo de parte prevenções partidarias, no principio, em que devia assentar esta lei, reconheceram que o capital para o estabelecimento da instituição de credito só nos poderia vir dos grandes mercados monetarios. Com effeito, procurar levantar no Brazil os 400.000:000$ necessarios para tal instituição fôra anniquilar nossas industrias, fôra comprometter o trabalho nacional. Mas, para attrahir da Europa este capital, duas condições eram precisas: 1º assegurar a sua remuneração, garantindo-lhe o juro, e estabelecendo a proporção de 27 pence por mil réis; 2º assegurar o seu retorno, sua volta. A lei attendeu a ambas estas condições. Já vê a camara que o systema era simples; pois firmava o credito sobre a propriedade. Mas era este justamente o ponto vulneravel do systema. Nossa propriedade está atravessando uma epoca de transição muito delicada, perigosa mesmo, posso dizel-o. O trabalho servil tem de acabar, e logo seremos obrigados a substituil-o pelo trabalho livre.»

No mesmo anno, o ministerio da fazenda, então commettido ao sr. Silveira Martins, escrevia, em seu relatorio ao parlamento: «O relatorio do ministerio a meu cargo, apresentado ás camaras legislativas na 1ª sessão de 1877» (ministro o Barão de Cotegipe) «trouxe ao vosso conhecimento as diligencias empregadas pelo governo para a execução da lei n. 2687, de 6 de novembro de 1875. Infelizmente foram ellas infructiferas. As condições, em que se teem achado as praças da Europa, parece que são ainda pouco animadoras para qualquer importante empreza. Definhando, cada vez mais, a nossa lavoura, já pela crescente falta de braços, já pela secca, que tão tenazmente ha flagellado algumas provincias do norte, com sensivel detrimento da producção e do commercio, confio em que tomareis as medidas, que melhor aconselharem as nossas condições economicas, e que mais prompta e efficazmente possam satisfazer os fins da citada lei.»

O governo ainda não desesperara, entretanto, apezar de todos esses embaraços, no proposito de leval-a a effeito; tanto assim que, na proposta do orçamento de despeza para o ministerio da fazenda (á pag. 15 desse relatorio), se lê, no § 3º:

«A que se tornar precisa para o pagamento da garantia de juro ás letras hypothecarias, nos termos da resolução legislativa n. 2687, de 6 de novembro de 1875.»

Consignando essa verba, tinha o governo evidentemente em mira habilitar-se, para executar a lei, que promettia á agricultura uma era nova, apenas se lhe offerecessem proponentes idoneos, sem mais interferencia do corpo legislativo para a votação dos recursos necessarios á iniciação da empreza. Tal era a anciedade pela inauguração do credito hypothecario sobre uma base segura e verdadeiramente nacional pela sua extensão e durabilidade, mas assentado exclusivamente na confiança do capital estrangeiro.

Muitos, não confiando já na exequibilidade da lei existente, engenhavam traças de addital-a com outras vantagens, que pudessem captar o capital europeu, timido, vacillante e rebelde ás seducções da offerta, em que tantas esperanças tinham posto homens de alto espirito, como Zacarias, Cotegipe, Sinimbú e Teixeira Junior, cooperadores no acto legislativo de 1875. Esse intuito inspirou o projecto, discutido e rejeitado em 1879, que ampliava os favores da lei de 6 de novembro a mais 2 % de garantia, fazendo-se para esse serviço uma emissão de apolices no valor de 120.000:000$000.

TENTATIVA COM CAPITAES NACIONAES

Depois de Laski e Frémy em 1875 nunca mais houve capitaes estrangeiros, que se propuzessem a contractar com o governo a creação do estabelecimento comtemplado na lei daquelle anno. Induzidos pela ausencia desse concurso, com que exclusivamente contaram os autores dessa lei, varios capitalistas do paiz, entre os quaes o sr. Mayrink, solicitaram, em 1881, as vantagens della para a emissão hypothecaria de um estabelecimento, que se instituisse sobre capitaes nacionaes. Mas, sob consulta do Conselho de Estado, subscripta pelos srs. Paulino, Teixeira Junior e Conde de Prados, o ministerio Saraiva indeferiu a petição, em 18 de julho de 1881, estribando-se, com todo o fundamento, na impossibilidade legal, para não fallar na inconveniencia economica, de sanccionar o emprego de capitaes brazileiros nessa applicação, que o legislador reflectida e peremptoriamente reservara ao capital europeu.

Mas em vão aguardou a lei de 1875 o assentimento do capital europeu, desiderando esse por cuja satisfação se mostravam ávidos, entre nós, todos os competentes no assumpto, liberaes e conservadores, salvo alguns espiritos inclinados, por idiosyncrasia, ao paradoxo, como o sr. Martinho de Campos; chegando o sr. Martim Francisco a declarar, em um notavel discurso, que por essa lei, na qual via «uma obra prima de organização em materia hypothecaria» sacrificaria até, si preciso fosse, o partido liberal. Oradores de todos os credos politicos, os melhores talentos das nossas camaras empenharam-se na defesa della, sustentando a interpretação de serem, não falcultativos, mas obrigatorios para o governo os seus termos, e deplorando como um infortunio publico a reserva guardada pelos capitaes europeus ante as nossas liberalidades.

NOVA ÉRA - CONFRONTO - O PROJECTO ACTUAL

Felizmente entramos agora em melhores dias. O que a monarchia não conseguiu em quatorze annos de esforços, sempre frustaneos, a Republica, ao que parece, virá realizar, nos seus primeiros mezes, e em proporções incomparavelmente mais grandiosa. A' organização do credito hypothecario entre nós se oppunham duas causas formidaveis, nos dous ultimos decennios do regimen imperial: a crise da escravidão, começada em 1871, e a crise do throno, declarada em 1888 e resolvida em 1889. Mas a eiminação desses dous obstaculos não bastaria, para animar os capitaes europeus a porem a sua confiança na situação do Brazil, si a Republica se não tivesse imposto, pela sua seriedade, pela sua indole calma, conservadora, organizadora, honesta, laboriosa, ao respeito e ás sympathias do mundo civilizado.

Graças aos effeitos bemfazejos dessas circumstancias, pelas quaes devemos louvar sobretudo as excellentes qualidades da nação, em que se apoia o Governo Provisorio, podemos, afinal, utilizar-nos da lei de 1875, mas em condições incalculavelmente mais generosas para com as necessidades do paiz, e, de mais a mais, sem a minima responsabilidade para os cofres do Estado.

Outorgava, com effeito, o decreto de 6 de novembro o privilegio de emissão hypothecaria, no paiz, durante quarenta annos, ao banco que se estabelecesse mediante capitaes estrangeiros no valor de 40.000:000$000, garantindo-lhe com o abono do Thesouro os juros e a amortização sobre essa quantia. Ora, o estabelecimento hypothecario, cuja instituição se regula no projecto que ora temos a honra de apresentar-vos, e cujo capital, todo estrangeiro, ascenderá a 100.000:000$000, prescinde absolutamente de garantia do Governo.

Dest'arte, ao mesmo passo que o capital offerecido por esse instituto de credito ás industrias do paiz se elevará cento e cincoenta por cento acima do calculado na lei de 1875, a Fazenda Nacional fica de todo em todo immune aos riscos e gravames, a que essa lei, no seu plano, a obrigava. Dupla e estupenda vantagem, que, um anno atraz, seria o mais irrealizavel dos sonhos, mas que bastaram alguns mezes de actividade republicana, para converter na mais proxima das realidades. A vossa assignatura agora bastará, para transformar em facto essa utopia, o mais estrondoso documento da confiança que inspira ao mundo o vosso governo.

UM PROJECTO INEDITO DO GABINETE 7 DE JUNHO

Nas vesperas da revolução de 15 de novembro o governo imperial chegara, ao que parece, á certeza absoluta da irrealizabilidade dessa aspiração, ainda com a garantia prescripta na lei de 1875. O ministerio Ouro Preto comprehendera a necessidade de procurar outro rumo, e commettera a um cidadão eminente o encargo de delinear um mecanismo bancario, que, auxiliado pela acção directa do Estado, pudesse communicar vida ao plano da lei de 6 de novembro. Esse trabalho, ainda inedito, mas que já achei composto na Imprensa Nacional, projecta a creação de um banco de credito real e movel, cujo typo se caracteriza no art. 1º, concebido assim:

«A um banco que se organizar na fórma das leis ns. 1237, de 24 de setembro de 1864, e 3272, de 5 de outubro de 1885, para o fim exclusivo de fornecer á lavoura e ás industrias que a ella se referem e prendem, capital a juro nunca excedente de 6 % sob hypotheca e penhor agricola, e emittindo letras hypothecarias e pignoraticias, emprestará o governo, sem juros, a somma de 100.000:000$000, por cincoenta annos, que será o prazo da sua duração, entrando o banco logo com igual quantia.»

Era, como se vê, o mesmo principio consagrado no systema dos recentes emprestimos á lavoura. Sommada aos outros cem mil contos, cuja distribuição pelos bancos o ministerio 7 de junho deixou quasi concluido, essa importancia elevaria a 200.000:000$000 os sacrificios directos da Fazenda. O contraste entre essa combinação, que esmagaria o Thesouro sob o peso dos favores liberalizados á especulação bancaria, e o plano que ora vos propomos, onde o Estado não emprega um real em moeda, ou garantia, define as duas situações, e põe um abysmo entre ellas.

Creava esse projecto um banco hypothecario, prodigalizando aos seus fundadores cem mil contos do Tesouro, por um emprestimo sem juros ao prazo de cincoenta annos. Ora, como um capital dado a juros compostos de 3 % dobra de valor no prazo de vinte e tres annos e meio, esse emprestimo, por cincoenta annos, de algumas centenas de mil contos, equivalia a um desembolso de duzentos mil contos por parte do Estado, tornando-se puramente nominal o concurso dos cem mil, que figuram no art. 1º do projecto como contribuição dos concessionarios, os quaes teriam apenas de adeantar a primeira entrada, para constituir o estabelecimento. Era, pois, em ultima analyse, um presente de cem mil contos, dados de mão beijada aos exploradores dessa concessão, a flor das concessões.

Não querendo modelar-nos por tão arrojado exemplo, e cingindo-nos a restaurar a lei de 1875, estariamos autorizados a empenhar a garantia do Thesouro sobre uma emissão hypothecaria de quatrocentos mil contos, pois a tanto montaria, na fórma da lei de 24 de setembro de 1864, a circulação em obrigações territoriaes de um banco instituido com o capital de quarenta mil. Mas nem a isso precisamos de abalançar-nos; porque o decreto ora submettido á vossa assignatura abre, sem a minima garantia dos cofres publicos, uma emissão hypothecaria de um milhão de contos de réis, instituindo, sem o menor concurso do Thesouro, um banco territorial de cem mil contos de réis, colhidos exclusivamente no capital particular.

ALTERAÇÕES Á LEI DE 6 DE NOVEMBRO

Apenas deslisamos da lei de 1875 em tres disposições, cuja inconveniencia já foi objecto das criticas mais abalizadas e concludentes perante o governo imperial, no antigo parlamento, no Conselho de Estado, mas que, ainda quando admissiveis no regimen de um banco estabelecido sob a garantia do Thesouro, não teriam defesa no de uma instituição mantida exclusivamente á custa do credito privado.

Referimo-nos: a) á exclusão das hypothecas urbanas, b) á fixação do prazo do banco em quarenta annos, e c) á nomeação do seu presidente pelo governo. No projecto de decreto que vos vimos propor, o presidente é eleito pelos representantes do capital, sob o prasme do governo, a existencia do banco alarga-se em cincoenta annos, e admittem-se as hypothecas urbanas a par das ruraes.

Convem considerar de per si cada, um destes tres topicos.

a) Admissão das hypothecas urbanas

A restrição da garantia de juros aos emprestimos sobre propriedades ruraes, inspirada aliás no pensamento de favorecer os emprestimos á agricultura, não é nem util, nem pratica: seria, pelo contrario, nociva, e actuaria contra o fim, que se teve em mente.

E, para não se presumir que bebemos este juizo em impressões da occasião, transcreveremos do Memorial redigido por Josseau, uma das maiores autoridades européas na materia, as reflexões, com que elle oppugnava, nesta parte, a lei de 1875.

«Precisamente» (são palavras suas) «ella» (essa restricção) «tem um alcance maior do que se parece crer; pois o seu resultado immediato será, não só limitar a garantia do Estado ao juro das obrigações emittidas em representação de emprestimos ruraes, como reduzir exclusivamente a essa categoria de emprestimos as obrigações da sociedade. Por esse systema, com effeito, si a sociedade quizesse tambem emprestar sobre immoveis urbanos, teria de emittir dous generos de obrigações: as ruraes, de juro assegurado pelo Estado, e as urbanas, privadas dessa vantagem; reunindo as primeiras como penhor o conjuncto dos bens ruraes, sobre que se justassem os emprestimos, e as segundas como garantia os immoveis urbanos, umas procuradas pelos capitalistas, outras refugadas, ou circulando apenas sob cotações inferiores.

«Será isso possivel? Evidentemente não. Uma sociedade de credito territorial não póde emprestar a taxas vantajosas para o mutuario, sem que por sua vez tome emprestado o dinheiro a taxas favoraveis. Ora, para que os capitalistas acceitem sob uma cotação vizinha do par os titulos que ella emitte, indispensavel é uma condição: a unidade da garantia em relação a todos. Cumpre que todos os titulos tenham por penhor o complexo dos immoveis hypothecados, e que todos esses titulos assentem na garantia de juros, a que o Estado se compromette.

«Por outra: o descredito dos titulos urbanos interessaria o credito dos titulos ruraes, e o desenvolvimento da sociedade embaraçar-se-hia, em detrimento dos mutuarios: ella seria, pois, inevitavel e promptamente levada a só outorgar emprestimos ruraes.

«Mas convem que a esta especie de bens se circumscrevam as vantagens do credito immobiliario? Certo que não.

«Primeiramente, não é isenta de embaraços a discriminação entre os bens ruraes e os urbanos. Não se acha traçada por toda a porte a linha divisoria entre a cidade e o campo. Havemos de attribuir a qualificação de bens ruraes unicamente ao solo, recusando-a ás construcções, ainda, quando estas demorem no campo? Como se classificaria uma vivenda ajardinada na aldeia, uma casa utilizada no serviço da exploração de uma herdade, etc.?

«Supponhamos, porém, que se aplainem essas difficuldades. Pois não se parcebe o inconveniente, que haveria, em limitar os emprestimos unicamente aos bens ruraes? Nos primeiros annos os pedidos de emprestimos viriam com extrema, lentidão. Sabe-se, com effeito, quão difficil é fazer penetrar no campo a idéa das vantagens offerecidos pelas instituições de credito. Por toda a parte onde se teem creado sociedades de credito real, os proprietarios das cidades são os primeiros a comprehender os serviços, que ellas lhes podem trazer, e os primeiros a aproveital-os. Não é, certamente, esse o fim final de instituições taes; mas, emquanto não acodem os emprestimos ruraes, a sociedade faz transacções, adquirindo assim o credito, de que mais tarde os campos aproveitarão.

«E não ha, demais, notaveis serviços, que prestar tambem á propriedade urbana? Por que excluil-a do beneficio de uma instituição, que assume o titulo geral de credito immobiliario? E' assim que, em toda a parte, onde se teem fundado sociedades desta especie, na Allemanha, na Hespanha, na Polonia e na França, ellas teem estendido as suas operações a todos os immoveis susceptiveis de hypotheca; e aquelles que fizeram ao Crédit Foncier de França a injusta increpação de emprestar muito mais, nos primeiros annos, sobre construcções urbanas do que sobre immoveis ruraes, acabaram por comprehender que os emprestimos desse instituto sobre edificações cooperaram poderosamente para o elevar á situação financeira, que hoje occupa. E' essa situação que, assegurando ás suas obrigações um credito de primeira, ordem, allivia, pelo seu curso estavel ao par em tempos normaes, os onus que o emprestimo impõe aos proprietarios agricolas.

«Restringir, logo, a garantia de juro ás obrigações emittidas sobre emprestimos ruraes, seria constranger a sociedade, que se fundasse, a reduzir as suas operações; seria, por consequencia, paralyzar-lhe o desenvolvimento, e prejudicar-lhe o credito de modo tão serio, que, apezar do meu firme desejo de ver estenderem-se aos campos os beneficios deste systema, eu não aconselharia nunca a um grupo financeiro que se submettesse a semelhante clausula.»

Essas ponderações calaram em espiritos competentes, um dos quaes, o actual presidente do Banco do Brazil, o sr. Dantas, expressava-se, na camara dos deputados, em 1877 (sessão de 21 de junho), deste modo:

«O nosso fim foi garantir os emprestimos ruraes. Mas alguma causa deste grande capital, que nós vamos garantir para a agricultura, poderia talvez empregar-se em emprestimos urbanos, si esta fosse a condição unica da incorporação da companhia. Em todo o caso dahi não viria perigo para o Estado. Enfraquecia a importancia consagrada a emprestimos ruraes. Mas acho que a promessa foi tão grande: 400.000:000$000!»

Sustentando a restricção adoptada na lei de 1875, o Visconde de Inhomirim, no seu parecer como conselheiro de estado, em 1876, accumulou varias considerações, cujo merito não importa agora examinar, porque todas ellas se referem á hypothese ele um banco nutrido pela garantia do Estado. «A propriedade urbana», dizia elle, «não carece de protecção directa do Estado para suas operações de credito. A lei não curou da propriedade urbana, a qual nenhum favor excepcional pedia ao Estado em meteria de credito. Empenhar, e comprometter, em tal caso, a garantia do governo seria violar os mais sãos principios de administração, que não permittem envolver a responsabilidade do Estado nos negocios das companhias, sinão quando não houver outro meio de proteger, ou resalvar, grandes interesses publicos, connexos com elles.»

Estas objecções, portanto, desapparecem, tratando-se de uma concessão, que não arma á garantia official, que não induz responsabilidade do governo.

Superiores são de certo os direitos da agricultura a todos os outros, em materia de credito hypothecario, attenta a primazia dos interesses nacionaes que com ella prendem. Mas nem por isso é licito esquecer o papel notavel, essencial, que toca a essa especie de credito em relação ao desenvolvimento da propriedade urbana, e os beneficios que esse ramo do commercio bancario é destinado a grangear, por este lado, ao paiz.

Quanto não deve, nesta parte, a França ao seu Crédit Foncier? Um dos livros mais recentes sobre o assumpto assignalava, ainda o anno passado, esses grandes e insuppriveis serviços, cuja ausencia teria prejudicado em proporções incalculaveis a expansão do progresso naquella nacionalidade. «Importantes serviços», diz o autor desse estudo, «tem prestado o Crédit Foncier aos departamentos e municipios. O modo do emprestimo a longo prazo, amortizavel por annuidades, adapta-se particularmente bem ás precisões e aos recursos dessas collectividades. E' menos oneroso para ellas do que os emprestimos a longo termo, contractados com particulares. Grandes obras devem a sua consummação a esse concurso do Crédit Foncier. E' graças aos adeantamentos feitos por elle sobre os bons de delegation que Paris se transformou completamente sob a administração de Haussmann, abrindo-se novas ruas, espaçosas, amplas, que levaram ar e luz ao coração da cidade. Não fallando nos trabalhos, que aformosearam a capital, muitas são as communas que devem a emprestimos contrahidos nesse estabelecimento a construcção de casas de camara, edificios escolares e templos. Allega-se que se excedeu a medida, oberando-se em demasia as municipalidades. Mas quão deploravel não seria a sua posição, si houvessem de pedir a emprestimos contrahidos em mãos particulares todo o dinheiro, que lhes tem mutuado o Crédit Foncier ? O desenvolvimento mesmo alcançado por elle em França, o logar consideravel e inconcusso que occupa no mundo financeiro, teem contribuido para o augmento da riqueza nacional. Declamam, bem o sabemos, contra a «feudalidade financeira». Tambem nós, sem duvida, condemnamos altamente esses syndicatos de especuladores imprudentes, que preparam lances de Bolsa à custa da economia nacional, acabando, as mais das vezes, por abysmal-a em fallencias ignominiosas. Mas estabelecimentos como o Crédit Foncier e o Banco de França, administrados por mão firme e prudente, e limitados a operações puramente regulamentares, não podem sinão prestar serviços ao paiz e ao proprio Estado, que muitas vezes tem tido a fortuna de recorrer-lhes ao credito.» ( GIRAULT: Le Crèdit Foncier et ses privilèges. Paris, 1889. Pag. 38.)

No Rio da Prata a experiencia é igualmente favoravel em extremo a essa applicação da hypotheca, a respeito da qual o Dr. H. Quesada se estende em encomios, no seu livro sobre El Credito Territorial en la Republica Argentina (Buenos Aires, 1888, pag. 41):

«Ninguna operacion ofrece al Banco mayor garantia que la de esta clase de préstamos, y ninguna en realidad debiera merecer de los poderes publicos mayor preferencia, por lo que ella importa, no solo para el progreso general, sino por quanto tiende a aumentar considerablemente la riqueza privada y mucho mas aún la renta publica.»

O outro argumento allegado pelos propugnadores da lei de 1875 consistia na inconveniencia de distrahir, a beneficio da propriedade urbana, uma parte mais ou menos avultada dos recursos da companhia, desfalcando assim sem utilidade os estabelecimentos ruraes do capital que elles demandam. Mas esta observação, quando pudesse proceder a respeito de um estabelecimento dotado de quarenta mil contos de capital, não colheria em relação a um, como este, cujo capital se eleve a cem mil contos, com a faculdade, ainda em cima, do ampliar-se ao dobro. Em uma emissão hypothecaria de um a dous milhões de contos cabem, e caberão, evidentemente, por muito tempo, as necessidades de credito da nossa propriedade rural e urbana, e não será lesão á primeira o quinhão do cabedal bancario applicado em auxiliar a segunda.

b) Duração do banco

A reducção da existencia do estabelecimento a quarenta annos, na lei de 1875 (art. 1º, § 8º), está ligada á fixação do prazo maximo dos emprestimos agricolas em trinta annos (art. 1º, § 10).

Ora, si o objecto dessas instituições consiste em supprir recursos á lavoura na proporção das suas necessidades, parece obvio que o prazo maximo de trinta annos não corresponde inteiramente a esse espectativa. Planejando a organização do credito immobiliario sob a garantia directa do Estado, o legislador brazileiro manifestamente cedeu á preoccupação de limitar ao minimo termo possivel a responsabilidade, a que sujeitava o Thesouro. Mas, ainda assim, não era razoavel querer um fim, e recuar ante os meios.

A limitação dos emprestimos hypothecarios entre os extremos de cinco a trinta annos copia o decreto francez de 31 de agosto de 1863, que autorizou a fundação de uma sociedade de credito immobiliario colonial. Não conhecemos os resultados dessa disposição nas colonias francezas. Mas, em França, a restricção legal, que a esse respeito se estabeleceu pelo decreto de 28 de fevereiro de 1852, o qual introduziu naquelle paiz o credito territorial, foi rejeitada pela sociedade, que para esse fim se organizou, e cuja resistencia encontrou satisfação completa nos decretos de 28 de março, que commetteram ao governo o encargo de regular a taxa da amortização em termos taes que a duração das annuidades se estenda entre vinte e cincoenta annos, e permittiram á companhia do Crédit Foncier dar o prazo de dez a sessenta ás suas operações de mutuo.

«Que inconvenientes acarreta esse estado de cousas?», diz Josseau. «Nenhum. Mui poucos emprestimos a breve prazo se teem contrahido. Quasi todos se solicitaram e ajustaram a prazo maior de trinta annos. Quem percorrer com os olhos uma taboa de amortização, verá quão onerosa é uma annuidade calculada sobre periodo tão breve. Si se acceitasse o termo de trinta annos como o maximo de duração dos emprestimos, quantos proprietarios não recuariam ante um contracto, que os gravaria com uma contribuição superior aos seus recursos! Quantos não se veriam impossibilitados, até, de solicitar o emprestimo, em presença da judiciosa regra que exige pelo menos equivalencia entre a annuidade e a renda dos immoveis consignados á garantia de taes operações? Não será preferivel, para a maioria dos mutuarios, convencionar prazo mais extenso, desde que se lhes deixa a faculdade de quitarem a divida antecipadamente, escolhendo a opportunidade que mais propicia se lhes affigure?»

Eis a questão sob a face dos interesses do mutuario. Mas ainda pela das conveniencias do Estado, não é menos obvia a desvantagem dessa restrição, creada, aliás, no intuito de favorecel-os. «Não fallo aqui no interesse da associação», pondera a mesma autoridade financeira. «Claro está que a associação é interessada em outorgar emprestimos de duração mais longa; pois dest'arte arrecadará por mais tempo a sua commissão, e essa facilidade grangear-lhe-ha maior numero de operações. Tal interesse, todavia, mão póde ser indifferente ao Estado, cuja garantia assim adquirirá mais probabilidades de tornar-se puramente nominal.»

A essa argumentação irresistivel não pôde responder, com todo o seu talento e competencia, o Visconde de Inhomirim, limitando-se a redarguir, em phrases vagas, que, quando as camaras brazileiras marcaram o prazo de 30 annos, «tiveram presentes consideração suggeridas pela situação da industria agricola no Brazil, que ellas conheciam melhor do que podem conhecer estrangeiros».

Mas, no proprio Conselho de Estado, Torres Homem ficou em unidade, nessa consulta, em que foi relator. Os outros dous membros da Secção de Fazenda eram o Visconde do Rio Branco e o Marquez de S. Vicente.

Desses, o primeiro opinou assim:

«Para os emprestimos a longo prazo não vejo perigo em que o maximo de 30 annos, que só aproveitará ás operações dos 10 primeiros annos, seja alargado até 50, ou mesmo 60, ampliando-se igualmente a duração da sociedade, cujo limite a lei fixou em 40 annos. A objecção ao primeiro desses prazos, tirada das taboas de amortização é fundada, e tem por fim tornar menos onerosos os pagamentos annuaes dos proprietarios ruraes.»

O segundo enunciou-se nestes termos:

«Pensa que a duração dos emprestimos póde ser espaçada até 45 annos, tempo sufficiente para uma moderada remissão da divida com beneficio reciproco.

«E' claro que, desde que se espace o prazo da solução das dividas, cumpre prolongar a duração do estabelecimento. Dirá mesmo que, ainda quando não fosse essa razão, opinaria pelo prazo de 80 annos.

«Si durante 40 annos, os mais difficeis, o banco, em vez de uma liquidação forçada, se mantiver prestando bons serviços, para que pol-o na necessidade de ir já antes enervando a sua acção animadora? Não é de presumir que a lavoura brazileira, susceptivel de um desenvolvimento extraordinario em seu amplissimo e fertil territorio, possa, no curto periodo de 40 annos, independer de protecção governamental. Não é tambem de presumir que o governo ainda então lhe possa ser util, no sentido de que se trata, sem assumir compromissos serios. A simples renovação do privilegio e mais favores não bastaria, para neutralizar os inconvenientes do curto prazo e suas consequencias.»

Josseau exprime-se a esse respeito nestas palavras:

«E' do caracter peculiar ás sociedades de credito fazerem emprestimos a longo prazo: deve-se suppor que os faça todo o anno até ao fim da sua existencia. Ora, admittindo, com a lei de 6 de novembro de 1875, que o maximo da duração dos emprestimos seja apenas de trinta annos, os que se effectuassem no ultimo não expirariam sinão cerca de trinta após o termo da sociedade.»

Concebendo-se aliás as hesitações do legislador brazileiro, meticuloso em não comprometter além do strictamente imprescindivel a responsabilidade do Estado, no systema dos bancos garantidos pela nação. Ainda assim, o projecto (de que acima demos noticia) elaborado sob as inspirações do ministerio 7 de junho, dava a um estabelecimento creado, por assim dizer, exclusivamente por um emprestimo do Thesouro, a uma sociedade particular, a duração de cincoenta annos.

Que duvida poderiamos ter, pois, em alongar o prazo da lei de 1875 em relação a um instituto de credito estabelecido sem o concurso dos capitaes ou, siquer, da garantia do Estado?

A lei de credito hypothecario votada em junho do anno corrente nas camaras italianas confere a duração de meio seculo ao banco, que manda fundar:

«La societá avrà, la durata di 50 anni, alla scadenza dei quali essa non potrà, senza una nuova concessione, fare nuove operazioni di mutui, nè quindi emettere nuove cartelle, ma continuerá ad esistere per liquidare le operazioni già fatte.»

Essa é a duração que adoptamos tambem, ficando aquem, portanto, da admittida pela maioria dos conselheiros de estado em 1876. E deste modo se permittirão os emprestimos ao prazo até de quarenta annos; limite moderado, si attendermos a que ha estabelecimentos modelos neste genero, como o de França e o do Hanover, onde elle se estende a sessenta, e si considerarmos que a duração, por exemplo, do Crédit Foncier é fixada em noventa e nove annos.

c) Fiscalização do governo

A lei de 6 de novembro de 1875, art. 1º, § 4º, prescreve: «Competirá ao governo a nomeação do presidente da directoria e de um dos membros da administração na Europa e de cada uma das caixas filiaes.»

Ainda sob o regimen da garantia da emissão hypothecaria pelo Estado, essa disposição passou com o protesto de opiniões das mais venerandas e insuspeitas. O senador Zacarias, cuja indole não póde incorrer na taxa de tendencia a diminuir as prerogativas do poder publico, ou descuidar-se de zelar os interesses do Thesouro, manifestava-se, perante o senado (sessão de 3 de outubro de 1875), no sentido que vamos reproduzir:

«O orador quer para o governo toda a fiscalização; mas a presidência deve ser deixada à escolha dos accionistas.

«O orador não deseja que o governo faça uma tal nomeação; deve ser um logar pingue, pago pela companhia, e para lá irá um medalhão.

«E' um presente politico.

«Quando se organizou o Banco do Brazil, tendo o presidente 10:000$, o maior vencimento que então existia, como as cousas se passaram? O autor do projecto, o sr. Visconde de Itaborahy, era ministro, e nomeou o primeiro presidente do banco, o conselheiro Serra. Logo depois que este falleceu, foi prosidente do banco o ministro, que o creou, e assim foi sempre preenchido o logar, até que o orador chamou, para dirigir o banco, em uma situação critica, o nobre Visconde de Inhomirim.

«Mas que proveito tirou o Banco do Brazil com esses presidentes officiaes e de ostentação? Nenhum. Nada embaraçou que elle se desviasse da senda, que devia seguir por lei. E, pois, amestrado pela experiencia, o orador não póde approvar o pensamento de ser nomeado pelo governo o presidente do banco. O presidente deve ser o que for indicado pelos accionistas: comece por ahi a sua responsabilidade.

«O governo que quer dar impulso ás instituições bancarias de hypotheca com a idéa de garantia de juro, tenha, não um presidente, que ainda de longe se assemelhe ao presidente do Banco do Brazil, segundo as attribuições que lhe forem dadas, mas um fiscal. O fiscal é de menos ostentação, é certo, do que o presidente, mas vae exercer funcção mais util, qual a de assignar as letras hypothecarias, que teem de ser lançadas em circulação.

«Não ha necessidade do presidente: basta o fiscal na séde do banco, e não em Londres logares desnecessarios e destinados a amigos.

«Como ha de suppor que, creando-se agora, no Brazil, um banco sob a presidencia aliás de um distincto cidadão, esse banco vá ser melhor dirigido do que foi o Banco do Brazil, que o foi pessimamente? Não póde acreditar nisto. Acredita mais na fiscalização; porque, na ordem dos individuos que não são barões, nem viscondes, ha muitos capazes de ser fiscaes.

«Em que responsabilidade não incorrerá o nobre ministro da fazenda, si facilitar qualquer cousa neste negocio?

«O grande banco hypothecario de França tem presidente nomeado pelo governo. Mas a principio não foi assim: apenas o governo alli tinha fiscaes.

«Cumpre notar uma circumstancia. Napoleão tomou o pulso á França, entendeu que era um outro Luiz XIV, entendeu que devia assumir a direcção do banco mediante delegado seu. Mas deve-se ter em vista que se trata da creação de um grande estabelecimento de credito hypothecario com capitaes principalmente de um paiz onde se liga á autonomia em materia de industria a mais alta importancia.»

São verdades ensinadas pela observação das cousas e dos homens do paiz a um estadista, que os conheceu intimamente, e cujas idéas administrativas o predispunham antes a exaggerar, do que a enfraquecer as regalias da autoridade. Com razão enxergava elle na escolha do presidente do Banco Hypothecario Nacional pelo governo a mais larga porta aberta á invasão dos interesses politicos no dominio de um assumpto, onde esse elemento seria o mais desastroso principio de desmoralização e ruina.

Outros pensaram, nessa discussão, differentemente. Mas não teriam de certo opinado assim, si, em vez de um estabelecimento fundado na garantia do Thesouro, o projecto de então contemplasse um banco instituido e alimentado exclusivamente pelo credito particular.

E'o que acontece no caso vertente.

Para assegurar as condições de vida bemfazeja, a que está indissoluvelmente associada a prosperidade do novo instituto, para garantir a moralidade da emissão, a regularidade dos emprestimos, a observancia geral da lei, basta a inspecção, qual ora a estabelecemos nos arts. 57 e 58 do decreto submettido á vossa assignatura.

Mesmo no decreto de 1875 o pensamento do legislador não era associar o Estado á administração do banco, superintendel-a, actuar nella, mas apenas fiscalizal-a. E' o que confessava, no senado, um dos membros mais activos das commissões reunidas, o sr. Teixeira Junior, que se mostrou disposto a renunciar á clausula da nomeação do presidente pelo governo, comtanto que se assegurasse a este, nas operações da companhia, uma inspecção efficaz mediante um delegado official, a quem ficasse incumbido esse munus.

Eis as suas palavras, na sessão de 30 de setembro de 1875:

«A razão pela qual, no § 5º do projecto da commissão, se estabeleceu a clausula de competir ao governo a nomeação do presidente da administração central e de um dos membros da commissão na Europa, acha-se explicada no proprio paragrapho: para preencher as funcções de seu fiscal.

«Não pretendemos que o governo intervenha na administração, nem na direcção da companhia. Quizemos apenas reconhecer um direito incontestavel do Estado, qual é o de fiscalizar essas operações, desde que assumir a responsabilidade da garantia dos juros e amortização da elevada somma de 400.000:000$000.

«O nobre senador» (Zacarias) «não contestou essa fiscalização. Contestou apenas a conveniencia de se inserir no projecto o direito de nomear o governo o presidente; porque, como muito bem explicou S. Ex., o logar de presidente deve competir á propria directoria, como é geral em todas as praças.

«Sobre este ponto creio que as commissões não farão nenhuma objecção; e não ha inconveniente em se adoptar o artigo, salva a redacção. Substitua-se o termo presidente, e diga-se: o governo terá o direito de nomear um fiscal.»

E' o que se faz no actual projecto.

JURO DOS EMPRESTIMOS

Fixou a lei de 6 de novembro de 1875 em 7 % o juro maximo dos emprestimos á lavoura pelo estabelecimento que se fundasse sob as disposições desse acto legislativo.

Essa limitação foi combatida com grande vantagem por Josseau.

«Releva não perder de vista que o banco territorial é apenas um intermediario entre o capitalista a os proprietarios. Para emprestar a estes em condições taes, necessario será encontrar entre aquelles condições ainda melhores, que lhe deixem certa ensancha, para cobrir as suas despezas, obviar ás eventualidades de prejuizo, e obter lucro. Para conseguil-o, está de certo esse banco em situação mais favoravel do que outro qualquer mutuario; porque offerece em garantia aos mutuantes o capital das suas proprias hypothecas, estribado em immoveis de valor duplo do seu, em obrigações negociaveis ao portador, num conjuncto de precauções e privilegios, que asseguram aos capitaes um dos mais solidos empregos. Mas, apezar de taes vantagens, não cabe ao banco o poder de senhorar os acontecimentos, as crises politicas, ou financeiras, que possam elevar a taxa do dinheiro. O proprio governo não dispõe de força bastante, para decretar a estabilidade do preço dos capitaes. Como, pois, obrigar o banco, sujeito á variação do curso dos valores, a manter perennemente, em seus emprestimos, a mesma taxa de juro? O resultado mais certo de semelhante medida seria deter a marcha da sociedade, precisamente quando mais necessidade tivesse do seu concurso a propriedade territorial.»

A experiencia da França é, a este respeito, a mais concludente das lições. O decreto de 28 de fevereiro de 1852 (art. 5º) estipulou alli em 5 % a taxa do juro, e o de 10 de dezembro do mesmo anno, estendendo á França inteira o privilegio do Banco Territorial de Paris, impoz-lhe a obrigação de emprestar sobre hypotheca até á somma de 200 milhões, mediante annuidades de 5 %, comprehendidos nesta os juros, a amortização e as despezas de administração, remindo-se o debito em cincoenta annos. Mas dentro em breve se reconheceu a impossibilidade de observar essa exigencia. Elevando-se o curso dos capitaes, teve o governo que expedir novo decreto, em 21 de dezembro de 1853, que substituiu a taxa de 5 % por essa escala movel.

«Mas isso ainda não foi sufficiente», observa o illustre especialista, a que, ha pouco, alludimos. «Era apenas esse palliativo destinado a prover ás necessidades do momento, mas insufficiente para dar ao credito territorial o poder de acção, de que carecia, e habilital-o a, superando as crises, consummar a obra, que se lhe confiara. Assim, quando o governo, em julho de 1854, o reorganizou sobre novas bases, assumindo-lhe sobre a direcção influencia mais decisiva, mediante a nomeação do governador e dos sub-governadores, supprimiu os maximos fixados pelos decretos de 10 de dezembro de 1852 e 21 de dezembro de 1853. Desse momento em deante é que a instituição entrou numa phase de consolidação e desenvolvimento progressivos; e, quando, sob a direcção do novo governador, M. Frémy, o systema dos emprestimos em dinheiro se substituiu de todo em todo pelo dos emprestimos em obrigações territoriaes, immenso foi o impulso da sociedade, crescendo em proporções consideraveis a importancia das transacções. A sociedade pôde emprestar então sem outros limites mais que as necessidades da propriedade immobiliaria mesma. O curso das obrigações seguiu um movimento ascendente, e ao cabo do anno de 1859 estava resolvido o problema. A lei commum, a lei do mercado era acceita por mutuarios e mutuantes. A sociedade já não era obrigada a tomar de emprestimo com uma mão, e emprestar pela outra, modificando as condições propostas aos seus mutuarios, conforme as clausulas, tão variaveis, que lhe dictassem os seus mutuantes. O que de então em deante emprestou aos proprietarios, foi o proprio credito dos seus immoveis, sob a fórma aperfeiçoada de obrigações hypothecarias, e a annuidade, que lhes impoz, ficou, dahi avante, ao abrigo das variações do curso dos valores publicos. Na realidade, é certo, a taxa, sob que se celebra o emprestimo, varia, consoante o preço a que se negocia a letra de penhor. Mas de que poderia queixar-se o mutuario? Submetta-se á lei do mercado. O credito real não póde ter, mais que o credito pessoal, a pretensão de evital-a. E depois, afinal de contas, o proprietario não tem meio de achar noutro mutuante vantagens comparaveis ás que lhe depara o banco territorial.»

Ora, o maior heneficio a que se póde aspirar com a instituição de taes estabelecimentos, é justamente este: assegurar, mediante elles, á propriedade immovel condições de credito mais benignas, mais accessiveis, mais generosas do que as possiveis noutra qualquer classe de mutuantes, e não apparelhar-lhe, fóra de todas as leis economicas, uma excepção artificial, creada a poder de concessões arbitrarias, violentas, sem elasticidade proporcional á exigencia das necessidades naturaes, e alimentadas a poder de sacrificios do Estado, nos quaes a propria classe affagada por esse regimen é, afinal, ao mesmo tempo, a mais tributada pelas multiplas contribuições do imposto destinado a sustental-o.

Vae nisso um grave erro economico. Mas é um dos que entre nós lançaram mais serias raizes, incrustando-se nos espiritos mais esclarecidos. Sob a preoccupação, bem inspirada aliás em sua origem, de servir á lavoura, insinuou-se-lhes uma idéa falsa, um frivolo preconceito, qual o de suppor que a interferencia do Estado omnipotente deve e tem meios de crear para ella uma situação economica alheia e superior ás condições da realidade. Dest'arte a prejudicaram, em vez de auxilial-a, creando óbices insuperaveis á organização do credito territorial até hoje, e inoculando no espirito á mais importante classe da nação uma prevenção viciosa, de que essa classe mesma é a primeira victima.

O decreto n. 370, de 2 de maio deste anno, modificou, nesta parte, o de 6 de novembro de 1875, estatuindo, no art. 300, que, «quando a sociedade de credito real for exclusiva em uma circumscripção, o maximo dos juros será de 8 %».

Claro está que não podiamos adoptar para o grande banco novo um maximo inferior. Nosso pendor agora seria, pelo contrario, a suppressão de toda clausula limitativa, no decreto que ora vos submettemos. Razões ha, porém, que nos aconselharam a transigir. Mas, fazendo-o, pareceu-nos conveniente estipular certas precauções, indicadas pela previdencia, que sirvam de correctivo a males possiveis.

Esse correctivo consiste em:

a) limitar a restricção do maximo aos emprestimos em beneficio da lavoura;

b) permittir a alteração dessa taxa, de accordo com o governo, si a situação dos mercados estrangeiros o exigir.

O proprio Visconde de Inhomirim, resistindo aliás, com quantos recursos lhe proporcionava a sua capacidade, á critica de Josseau contra essa clausula da lei de 1875, reconhecia a necessidade de ceder á evidencia, eliminando esse embaraço, desde que os factos o denunciassem pelos seus effeitos. «A experiencia», dizia elle, «poderá mostrar a exactidão das previsões dos proponentes; e convem esperar por ella, antes de alterar a lei no sentido da proposta.»

UNIDADE, OU PLURALIDADE?

Para solver esta questão, não devemos pairar na região abstracta das theorias, mas descer ao terreno raso da historia, da pratica, da experiencia accumulada. Ella é decisiva.

A multiplicidade, no systema dos bancos hypothecarios, não se concebe sensatamente, sinão nos paizes que podem alimental-o dos seus proprios capitaes, nos paizes onde superabunda o dinheiro, que habilite a iniciativa particular a levantar e desenvolver esses estabelecimentos sem o concurso da riqueza estrangeira. Mas, especialmente nos Estados novos, como o nosso, e em todos aquelles onde a economia indigena carece de empregar-se noutras operações, onde não a seduz a renda modica obtida nas transacções sobre a propriedade do solo, onde seria até pernicioso ao progresso nascente das industrias a absorpção do capital nacional nos negocios de lenta circulação a que a hypotheca vem servir,- em taes paizes o credito immobiliario é inconciliavel com a pluralidade dos bancos.

Esta verdade é de bom senso elementar. «Eu não duvido» dizia, em 1875, o Barão de Cotegipe, «não duvido que, si pudessemos estabelecer os bancos territoriaes com capital nacional, este» (o da pluralidade bancaria) «deva ser o systema preferido. Mas, desde que não se trata de um estabelecimento da natureza desses, desde que, por accordo geral, se declara que não ha capitaes no paiz para fundação de taes bancos, e é mister ir buscal-os ao estrangeiro, quer tomando o governo directamente emprestado, quer promovendo a organização de companhias, que forneçam esses capitaes; desde que assim succede, não podemos admittir outra instituição, que não seja a de um banco unico, cujas letras, conforme o projecto, sejam emittidas na Europa.

«Ora, que succederia, si tivessemos diversos bancos da mesma natureza, nas diversas provincias, ou em diversas circumscripções marcadas pelo governo, fazendo-se na Europa uma concurrencia com letras todas garantidas pelo governo?

«Dizem que se mata a concurrencia; mas a concurrencia, neste caso, é que seria a morte das emprezas.»

E, si esse perigo era evidente em uma competencia entre letras hypothecarias todas garantidas pelo governo, - que não se deveria esperar, quando ella se travasse entre titulos de varios estabelecimentos, destituidos todos elles dessa garantia?

Aos que teem de dar o dinheiro, observava o senador Zacarias, «não é indifferente que exista um banco só, em uma larga circumscripção, ou pluralidade de bancos. A opinião publica está feita sobre a segurança de um estabelecimento unico no paiz: é mais facil a cada capitalista, formar seu juizo a este respeito do que havendo muitos bancos sujeitos a concurrencia. A circumstancia de haver garantia de juro não altera a questão em si: independentemente de tal garantia, o systema hypothecario prefere a unidade bancaria á pluralidade de bancos.»

Entre as nações européas, presentemente, a tendencia é para unificar os bancos hypothecarios. Ainda agora mesmo nos acaba de dar este exemplo a Italia, na creação de um grande banco de Estado sob a denominação de Credito Fondiario, na qual collaboraram, ao lado do ministro das finanças Giolitti, autor do projecto, financeiros e economistas como Luzzati, Ferraris, Doda, Saracco, e outros. E qual foi o reparo mais consideravel, articulado alli contra a organização desse instituto? Lamentou-se que o plano do governo lhe não désse todas as proporções desejaveis de grandeza, solidez e concentração necessarias a um estabelecimento nacional, «al quale tutti, in vista dei benefizi che avrebbe dato, avrebbrero consentito a fare i più grandi sacrifizi, e ad acordare le più ampie facoltá.» (La Tribuna, 26 de jun.)

Dessas censuras fez-se orgão o deputado Sciarra, na sessão de 25 do mez passado: «Allorché fu annunziata la creazione di un istituto di credito fondiario, l'ambiente non era contrario al concetto di un istituto unico; lo credette leggere fra le righe del disegno ministeriale una tendenza all'istituzione di un credito fondiario unico, mitigato da taluni riguardi verso gli istituti e verso interessi considerevoli esistenti. Mi sembrò che tale tendenza del Governo non chiedesse che di essere incoraggiata per dichiararsi più apertamente. In conseguenza di questo mio aprezzamento tuto personale, che talune circostanze però rendevano molto plausibile, credei alla formazione di un grande istituto di credito fondiario, nel quale si sarebbero, fôrse, fusi tutti gli istituti preesistenti. Esso avrebbe fatto appello alla fiducia del publico con una cartella unica garantita da un vistoso capitale, cogli utili dei mutui già fatti e con quelli che avrebbe accordato in seguito. Sorto sotto gli auspici dei grandi istituti italiani, presentato all'estero da grandi istituti esteri, esso era destinato a trovare presso i capitali stranieri la fortuna che ebbe in Francia il Crédit Foncier. Come questo, esso avrebbe proceduto mediante emissione di cartelle fatta nei momenti piú proficui del mercato per racoglieri i capitali da investire in mutui. Ed a tale istituto io non avrei negato nè il monopolio, nè una lunga esistenza, come la richiedeva il Governo nel primitivo disegno di legge; ed in cambio mi avrei atteso che la proprietà fondiaria ne avesse ritratto il vantaggio di mutui a lungo ammortamento e un interesse piú che modesto.»

Da multiplicidade bancaria em materia de credito territorial temos, por outro lado, uma experiencia nada invejavel nas lições da Republica Argentina, onde nos offerece amostra expressiva dos males desse systema a vida rachitica do Banco Hypothecario da Capital, instituido em 1889 com o capital de vinte milhões de pesos-ouro.

Os doutrinarios, os allucinados pelo prestigio de formulas convencionaes, os dilettanti em questões sociaes, que não apanham nellas sinão a sonoridade das palavras consagradas, os artistas em phrases de effeito orchestral, os fanaticos da logica a todo transe, os que sacrificariam a ordem, a liberdade real, o futuro inteiro do paiz a um syllogismo de escola, poderão levantar aqui os clamores habituaes da ignorancia, da imprevidencia, da cegueira radical, o maior flagello do progresso pratico e o inimigo mais damninho das instituições livres. Mas a verdade verdadeira é que não teremos nunca o credito territorial em acção, em florescencia, em fructificação entre nós, sinão mediante um grande banco hypothecario nacional.

Não desconhecemos os embaraços, que a esse objectivo oppõe o principio federalista; o nosso decreto resalva, completamente, deixando illesa a autonomia dos Estados. Mas toda a autoridade federal, convem empregal-a num estabelecimento só, abstendo-se o governo da União de conceder a outros bancos, durante o prazo da existencia deste, a emissão hypothecaria.

Creado em taes condições o banco federal, operando sobre uma zona que abranja todo o territorio do paiz, não póde temer a concurrencia de estabelecimentos congeneres, circumscriptos a campos de operação locaes. «Supponha-se que não ha a garantia do governo», dizia o senador Zacarias (5 de outubro de 1875), «os capitalistas julgam-se mais seguros, emprestando a um grande banco, que tem por limites um Imperio como o Brazil, do que offerecendo seu capital para as provincias do Pará, do Amazonas, de Sergipe, da Parahyba, etc.»

O instincto do proprio interesse, do interesse bem entendido, do interesse commum actuará naturalmente sobre os governos dos Estados, para se não abalançarem á imprudencia inutil, impotente, de levantar estabelecimentos locaes de credito territorial, emquanto o banco federal os servir bem, num ramo de industria em que tão cedo esses institutos de área limitada não encontrarão na propriedade das suas circumscripções, já explorada pelo grande instituto nacional, elementos de vida independente e segura.

Nem o capital estrangeiro, o unico de que taes emprezas por muito tempo ainda poderão viver entre nós, acudirá ao appello de especulações tão ephemeras e tão sem horizonte, emquanto houverem de luctar contra uma força financeira ramificada pelo paiz todo, como a que o nosso projecto se destina a crear.

Eis o que, ao nosso ver, assegura o porvir a este organismo central, entre as tendencias divergentes dos varios Estados unidos e descentralizados pela fórma federativa, imprimindo-lhe o caracter de um vinculo de alliança entre as forças productoras da nação, neste regimen de expansão local.

OS ESTABELECIMENTOS ACTUAES DE CREDITO REAL

Nenhum aggravo faz aos bancos existentes a nova instituição, pelos motivos que, já ha muito, compendiava o sr. Teixeira Junior. «Disse-se», observava elle, no senado (Ann., 1875, vol. V, p. 388), e «que o privilegio, que estabelecia o projecto para as zonas que fossem marcadas ao banco, ou a cada banco, que se autorizar, prejudicaria de allguma fórma concessões já feitas ao Banco do Brazil e ao Banco Predial para emissão de letras hypothecarias segundo as bases estabelecidas pela lei de 24 de setembro de 1864. A este respeito me parece que ao Banco do Brazil, assim como ao Banco Predial, nenhuma lesão resultará da adopção do projecto, que discutimos; porque, si o Banco do Brazil tivesse podido usar da faculdade, que lhe foi concedida nos termos da lei de 1864; si elle tivesse podido alargar a emissão hypothecaria, como se comprometteu a fazer, nós não teriamos necessidade de aventurar o Estado a tomar compromisso tão importante, como aquelle que se debate neste momento.»

O decreto de 1875 não tocou nesses direitos adquiridos, e o nosso não os respeita menos. Entretanto, nenhuma conveniencia publica se liga á manutenção desses restos mutilados e esparsos de tentativas condemnadas á impotencia por um defeito incuravel de origem. Da maior vantagem seria, pelo contrario, assimilarem-se todos na massa do novo estabelecimento, capaz de fecundal-os, e desenvolvel-os seriamente.

Referindo-se á situação em França, diz Josseau, num trabalho recentissimo:

«A creação de varias sociedades de credito immobiliario dentro em pouco veiu a tornar-se embaraço ao credito dellas. As obrigações omittidas por essas diversas sociedades achavam difficuldade em se collocar, mórmente nos departamentos. Titulos taes evidentemente não podiam negociar-se quotidianamente e sem depreciação inquietadora, a não ser num grande mercado de capitaes, como o da capital, onde abundam recursos, e os valores fiduciarios podem encontrar maior numero de compradores. Teve o governo, pois, que se deliberar a absorver todas as sociedades departamentaes num só instituto, escolhendo o Banque Foncière de Paris, afim de constituir o grande instrumento de credito, com que resolvera dotar a propriedade immobiliaria. Uma convenção celebrada entre o ministro da agricultura e esse estabelecimento, aos 18 de outubro de 1852, e opprovada por decreto de 10 de dezembro subsequente, ampliou o privilegio desse banco a todos os departamentos, onde não houvesse sociedade de credito territorial, autorizou-o a encorporar em si as de Nevers e Marseille, e fez delle, sob o titulo de Crédit Foncier de France, um verdadeiro banco nacional da propriedade immobiliaria.» (Dictionn. des Finances, de L. Say, vol. I, p. 1323.)

E' a um resultado analogo que se aspira neste projecto, mas isso mediante um estabelecimento de iniciativa particular, sem dotação do Estado e revestido apenas do privilegio da emissão hypothecaria. Constituido esse estabelecimento, a pouco e pouco, por obra do proprio banco, da sua acção economica, da sua expansão legal, ir-se-hão resgatando as faculdades hypothecarias investidas noutros institutos por lei geral, para se virem aggregar num só organismo, distribuido pelo paiz inteiro. Da esterilidade, em que vegetam, e continuariam a vegetar nesses pequenos nucleos dispersos, improficuos, incapazes de dar á emissão hypothecaria proporções correspondentes ás necessidades do credito agricola e industrial no seio de um povo exuberante de vida, esses privilegios passariam a um estado de actividade opulenta, explorados e dirigidos por uma vasta associação de capitaes, apoiada nos grandes mercados estrangeiros.

Essa incorporação, porém, deve effectuar-se por accessão espontanea dos bancos empossados presentemente em privilegios de credito territorial. E, para este fim, adoptamos por modelo a reforma italiana do mez passado, que dispõe um systema de transacções, para consolidar no Credito Fondiario os institutos, que actualmente exercitam esse commercio no reino, isto é, a carteira hypothecaria do Banco Nacional, do Banco de Napoles, do Banco da Sicilia, da Caixa Economica da Lombardia, do Monte dei Paschi de Siena e do Banco do Espirito Santo de Roma. Esses estabelecimentos são autorizados, todos elles, a fundir os seus interesses hypothecarios no grande banco, entrando como co-participes na sua formação, e cessando ipso facto de funccionar autonomicamente em relação ao credito territorial.

O nosso projecto abraça uma combinação semelhante.

CONCLUSÃO

A rotina paralytica e cega ha de duvidar, certamente, da plausibilidade das esperanças postas por nós no futuro desta instituição, na sua maravilhosa influencia creadora. Pois ainda haverá, na propriedade existente, materia, que submetter á hypotheca? Pois, assim nas cidades como nos campos, os estabelecimentos actuaes já não terão absorvido todos os valores susceptiveis de utilizar-se nesta especie de exploração, e não os trazem presos aos seus contractos, encerrados nas suas carteiras? Que vasta região é essa de capitaes, esquecida e desoccupada, com que este novo gigante financeiro conta para nutrição de suas forças, para expansão da sua actividade, para desenvolvimento das suas vastas especulações?

Taes interrogações explicam-se, nos que imaginam que a organização geral do credito hypothecario póde cogitar em viver da propriedade existente, dos valores já consolidados e immobilizados hoje na terra, na agricultura, na edificação urbana.

Mas a grande funcção do credito hypothecario não é subsistir do que achou feito: é crear a propriedade hypothecavel.

Elle extrae de si, por assim dizer, os seus elementos de vida. Transforma os baldios em campos cobertos de mésses, a poder dos recursos que offerece ao trabalho, cujos fructos o virão remunerar. Attrae ao deserto o colono, proporcionando-lhe recursos, para converter o ermo esteril em povoado florescente, cuja industria contribuirá mais tarde, para enriquecer o capital, que com as suas antecipações a gerou. Transforma, pela desapropriação e pela edificação, as velhas cidades, e improvisa pelos processos modernos cidades novas, mediante simplesmente as transacções da hypotheca aperfeiçoada e adaptada á rapida circulação commercial da propriedade immovel pelos titulos de credito emittidos como uma especie de moeda internacional, acceita em todas as praças do mundo. Entre o trabalhador e o solo medeia um obstaculo desesperador: a indigencia de capitaes de exploração, a mingua de meios para a subsistencia durante o primeiro amanho da gleba e a primeira cultura das suas propriedades productoras. O credito hypothecario suppre-lhe essas necessidades, cuja satisfação, desentranhando-se em renda, lhe compensará com usura os sacrificios adeantados. Entre o architecto, edificador de cidades, entre o hygienista, saneador dos grandes centros populosos, e os seus projectos magnificos em belleza, em utilidade, em opulencia, em conforto, em saude e vida para as populações urbanas, interpõe-se uma impossibilidade invencivel: a escassez do credito. A hypotheca offerece-lh'o, recebe, em troco das sommas que lhe facilita, a garantia dessas mesmas creações, que ella vae levantar, e que serão amanhã a retribuição da sua liberalidade. E' assim que se faz o progresso na Australia, na Nova Zelandia, na America do Norte, na Republica Argentina.

Estamos vendo affiançarem-se juros, pelo Estado, para a creação de burgos agricolas. O credito hypothecario póde multiplical-os sem essa garantia. Vemos debater-se o problema supremo da immigração, o grande problema nacional, exclusivamente no circulo estreito dos favores officiaes, dos auxilios directos do Estado. Pois bem: organizae o credito hypothecario em todas as suas condições de fecundidade e energia, e tereis creado para a solução desse problema o mais poderoso dos instrumentos. Vemos pensar-se em dar ás capitaes desacreditadas pela sua insalubridade, pelo anachronismo da sua edificação, pela insufficiencia da viação que as serve, uma reputação honrosa ao paiz e seductora para o estrangeiro. E não se lembram sinão de ir impetrar o milagre ao credito do Estado. Mas constitui o credito hypothecario; e elle dará ás emprezas particulares, á iniciativa individual os meios de transfigurar, de aformosear, de sanificar as nossas cidades. Basta-lhes para isso o direito de desapropriação e o concurso do banco.

Perigos, não os ha nesse regimen, desde que a emissão das letras hypothecarias assentar em garantias, como as que o projecto estabelece. Si as grandes emissões de cedulas hypothecarias na Republica Argentina actuaram no sentido da crise financeira, que tala esse paiz, é que motivos especiaes turbaram alli as funcções naturaes do systema.

Primeiramente, os capitaes não eram, em geral, estrangeiros. A especulação jogava-se toda entre Buenos-Aires e Montevidéo. Os interesses commerciaes illudiam-se reciprocamente de uma a outra praça. Para fundar o Banco Nacional, em Montevidéo, se depreciavam alli como imaginarios os capitaes argentinos, ao passo que Buenos-Aires recebia transitoriamente as libras esterlinas dos especuladores orientaes, para comprar terras, que se elevavam hypotheticamente ás nuvens, mediante exaggeradissimos preços. E manifesta é a differença entre o dinheiro ephemero, angariado entre dous paizes que não teem mercado financeiro, e os capitaes negociados nas grandes praças do mundo.

Por outro lado, os emprestimos estrangeiros, agigantando o acervo dos compromissos, a má administração dos bancos officiaes, alargando-se em favores ás influencias politicas, e a exploração das emprezas de centros agricolas, explorando-se a beneficio de interesses de partido, cooperaram largamente, para desvalorizar os titulos, abalando o credito dos estabelecimentos emissores. Assim as cédulas da ultima serie, lettra P, no Banco Hypothecario da Provincia baixaram de 100, valor nominal, até 45. Mas o Banco Nacional, que tinha parte dos seus titulos em ouro, conseguiu, nas suas operações em Londres, cotar parte do seu papel dessa especie até 110 e 120, quando não passa de 100 o seu valor nominal.

Os perigos da intervenção do espirito politico neste ramo de actividade industrial são formidaveis, e os seus effeitos incalculavelmente calamitosos. Os bancos estrangeiros, seja nas republicas platinas, seja na brazileira, assignalam-se pela segurança das suas operações, pela solidez do seu regimen. O compadrio local não os póde invadir; as especulações viciosas são, pois, inflexivelmente joeiradas; e os estabelecimentos apuram do gyro de seus recursos tudo que delles se póde extrahir em beneficio de cada instituição. Nos bancos nacionaes, pelo contrario, a intrusão do elemento pessoal, de camaradagem indigena, da emulação politica, dos corrilhos pessoaes que ella fomenta, é irresistivel. As transacções de protecção pullulam, inevitaveis. O commercio bancario atrophia-se, desvirtuado, empobrecido, rebaixado pelos conluios particulares, em prejuizo do dinheiro dos accionistas, da dignidade do trabalho, do caracter dos estabelecimentos, da riqueza nacional. Eis os riscos, que nos empenhamos em fugir, entregando ao capital estrangeiro, e pondo fóra de toda a acção official a administração do banco, mediante escolha de toda a directoria, inclusive o seu presidente, pelos interessados. E tão profunda é, neste ponto, a nossa convicção, que, ainda quando elles se offerecessem a abrir mão voluntariamente deste direito (o que não nos era agora difficil obter), não hesitariamos em recusar o sacrificio.

Lacuna deploravel em nossa civilização e incompativel com o nosso desenvolvimento,- a verdadeira hypotheca, isto é, a operação facil, ao alcance de toda a propriedade immobiliaria e servida por uma extensa mobilização dos seus instrumentos de credito, ainda não existe entre nós. As carteiras reservadas a essa funcção resentem-se de uma cachetica mesquinhez. Crearam-se bancos brazileiros de credito real sem garantia de juros. Mas ahi está palpavel a sua inefficacia, a impotencia congenita do seu organismo. Não se logrou, até hoje, valorizar a letra hypothecaria, que se arrastará, rara, depreciada e infecunda, pagando os agricultores 10 a 12 % de premio em emprestimos tão onerosos, quão regateados. E' que o capital do paiz não póde empregar-se em valores de juro inferior a essa taxa; além de que o estão a reclamar outras industrias, mais remuneradoras, para as quaes já elle é insufficiente. Da mais alta conveniencia será, pois, desentranhal-o da hypotheca, substituindo-o pelo capital estrangeiro, que o juro de 4 e 5 % póde encaminhar copiosamente para o Brazil.

A vida nova, transfundida á nação pelo regimen republicano permitte-nos fazer do pensamento da lei de 6 de novembro, para este fim, o uso mais inesperado e brilhante, escoimando-a dos seus defeitos originaes, desembaraçando-a das responsabilidades colossaes, que a sua execução servil acarretaria ao Estado, achando nos capitaes estrangeiros a confiança, que a monarchia, em longos quinze annos de aspiração activa, nunca lhes conseguiu inspirar, e erguendo exclusivamente sobre a iniciativa particular o edificio do nosso credito real em proporções quasi triplas daquellas que debalde viveu a sonhar por tres lustros o antigo regimen.

Si, como é de esperar, este projecto se traduzir brevemente em séria realidade, será, depois da lei de 13 de maio, o maior passo dado, entre nós, para a reconstituição da lavoura, o desenvolvimento da colonização e a transformação da propriedade pelo credito associado ao solo e ao trabalho.

Rio, 31 de julho de 1890. - Ruy Barbosa.