DECRETO N. 451 A - DE 31 DE MAIO DE 1890
Reorganiza o Observatorio do Rio de Janeiro, creando o serviço geographico, que lhe ficará annexo, e transfere-o para o Ministerio da Guerra.
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, considerando:
Que é de urgente necessidade reorganizar-se o Observatorio do Rio de Janeiro, pondo-o em pé de satisfazer os fins a que é naturalmente destinado;
Que convem aproveitar tão util instituição de sorte que nella completem seus estudos os engenheiros geographos e officiaes do estado-maior, adquirindo os conhecimentos praticos indispensaveis para o bom desempenho das commissões, que ser-lhes-hão confiadas, commissões entre as quaes salientam-se as que visam a fixação dos limites do territorio da Republica:
Resolve reorganizar o Observatorio do Rio de Janeiro, pelo regulamento que baixa com o presente decreto, creando ao mesmo tempo o serviço geographico, que lhe ficará annexo, e transferil-o para o Ministerio da Guerra.
O Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos assim o faça executar.
Palacio do Governo Provisorio, 31 de maio de 1890, 2º da Republica.
MANOEL DEODORO DA FONSECA.
Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Generalissimo. - A instituição consagrada no projecto que temos a honra de submetter-vos, representa a mais adeantada phase das idéas contemporaneas quanto á propriedade territorial, o mais bemfazejo de todos os regimens para o seu desenvolvimento e fructificação nas sociedades hodiernas. Consiste o seu fim em estabelecer um systema efficaz de publicidade immobiliaria, e commercializar a circulação dos titulos relativos ao dominio sobre a terra.
O ideal dos economistas e jurisconsultos seria, no dizer de um publicista italiano, «constituir registros publicos, onde fosse facil e expedita a demonstração da propriedade territorial, bem como a investigação dos direitos reaes incidentes á propriedade immovel, e reunir em um só os varios institutos de publicidade existentes entre nós, a saber: cadastro, registro, hypotheca e transcripções. Só por esse meio se lograria constituir uma especie de estado civil da propriedade immobiliaria, correspondente ao estado civil das pessoas, e um bom systema de mobilização da propriedade estavel, sem o qual baldado será esperar organização perfeita do credito territorial.»
A esta aspiração não respondem os institutos de publicidade vigentes na Europa. Estava reservado á mais nova das civilisações coloniaes, á australiana, trazer ao mundo a solução deste problema, embaraçada, no velho continente, pelo contraste entre as preoccupações formalisticas dos jurisconsultos no tocante á concepção da propriedade immovel e á funcção economica, que essa especie de propriedade, emulando com a riqueza mobiliaria, tem que desempenhar em nossos tempos; funcção nova, que a transforma, que a multiplica, que a democratiza, abrindo-lhe vastos horizontes, alargando-lhe a esphera dos beneficios, pondo-a em contacto directo e continuo com a evolução accelerada e incessante das sociedades modernas.
Desde que o adeantamento da industria, fecundada pela collaboração maravilhosa do capital, abriu ao trabalho do homem essa fonte inexhaurivel de opulencia, a riqueza mobiliaria, todo um mundo novo, por assim dizer; desde que, graças a esse estupendo effeito da expansão exterior da personalidade humana, sob o estimulo do sentimento da liberdade individual e das exigencias crescentes da lucta pela vida, a propriedade mobiliaria, triumphando contra a stygma de subalternidade e vilipendio, com que a antiguidade e assignatura (mobilium vilis possessio), veiu rivalizar com a propriedade immovel, ameaçando arrebatar-lhe o primado immemorial, a soberana ameaçada teve que adequar-se á situação nova das cousas, armar-se para a concurrencia com os processos superiores da sua competidora, reformar o seu regimen, corrigindo os vicios que, entretidos, acabariam por converter-lhe em inferioridade a tradicional supremacia. Já de tempos bem remotos principiara essa evolução; porquanto a historia da propriedade romana, como demonstrou Sumner Maine, não é, na essencia, mais que a da assimilação gradual das cousas mancipi ás cousas nec mancipi, isto é, em substancia, a historia da mobilização progressiva dos bens territoriaes, da sua approximação á propriedade mobiliaria individual. Todavia, a disparidade entre as condições das duas especies de propriedade era radical; a propriedade movel, na moderna accepção deste qualificativo, não existia sinão em estado rudimentar, e a propriedade immovel, absorvida no seu papel politico, como fundamento de todo o poder, era contrariada e paralysada na sua funcção economica, que outras condições sociaes deviam revelar e expandir. Pela instituição da hypotheca adquiriu ella o primeiro caracter de instrumento de credito. Mas esse grande progresso na evolução economica da propriedade territorial, transmittido pelo direito romano a todas as legislações modernas, necessitava, para se conservar nos seus elementos juridicos essenciaes, de transformações, que só recebeu na segunda metade do seculo dezenove, quando, graças á acção dos economistas, se inaugurou nas leis francezas e belgas a especialização, a publicidade e a transcripção.
Si, porém, nos seculos passados encontramos alguns vestigios da publicidade nas transacções immobiliarias, da qual a transcripção é o primeiro systema organico, tal não acontece com o principio economico da circulação do solo, innovação peculiarmente moderna, cujos primeiros passos se nos deparam nas leis da revolução franceza, onde pela primeira vez se tentou fazer da hypotheca um poderoso instrumento de credito, mediante a creação da cedula hypothecaria circulante. São notorias as applicações dessa idéa, melhorada e transformada em nossos dias. Mas a despeito de todas essas reformas, longe continuamos a estar do grande desideratum: a publicidade perfeita e a mobilização completa da propriedade territorial. Nenhuma das instituições adoptadas preenche essa lacuna; porque nenhuma satisfaz á condição fundamental do problema: nenhuma estabelece a certeza da propriedade. Em consequencia, escreve uma autoridade contemporanea, «vão será esperar, na França, na Belgica, na Italia, o incremento do credito territorial, desde que ao credor não é manifesta a segurança do emprego do dinheiro, nem possivel a presteza e facilidade da exacção.»
A propria organização cadastral, estabelecida exclusivamente com intuitos fiscaes, não cria a prova certa do dominio. Tão pouco resulta essa prova dos actos de acquisição; porque o alienante do immovel póde não ser o seu verdadeiro proprietario; e, em tal caso, a escriptura de alienação não vale contra os direitos deste. Tambem não aproveita, para esse fim, a transcripção; porque esta, sendo apenas uma garantia contra terceiros, não legitima o falso dominio, nem traslada o verdadeiro, não opera a transferencia da propriedade, nem sana as nullidades extrinsecas, ou intrinsecas, da sua alienação.
O codigo civil austriaco e as legislações germanicas adoptaram um mecanismo, notavelmente sabio, que assegura á propriedade immobiliaria um regimen cabal de publicidade, mas que, constituindo verdadeiro modelo a este respeito, não satisfaz em toda a plenitude ás necessidades economicas dessa especie de propriedade no tocante á facilidade de sua circulação. A Prussia buscou acudir a essa deficiencia, engenhando um novo titulo hypothecario, o grundschuld. Mediante essa combinação, estatuida na lei de 5 de maio de 1872, o proprietario do immovel póde constituir em seu proveito, ou a beneficio de terceiro, uma hypotheca fraccionavel por elle mesmo, ou por outrern, em muitas cedulas, todas com igual direito, sem preferencia, ao reembolso, e transmissiveis por endosso.
Mas a formula da solução procurada nessas varias tentativas parece estar definitivamente no systema, que o mundo todo conhece hoje sob o nome de lei Torrens. Por esse systema se estendem á propriedade territorial as vantagens preciosas da riqueza mobiliaria; pois, «além de fundar essa instituição uma publicidade perfeita dos immoveis, facilita a circulação da propriedade estavel por meios simples, expeditos e baratos, dando ao acto de acquisição dos immoveis o caracter de um verdadeiro titulo de credito, transferivel por endosso», e accrescentando a todas essas virtudes a de não forçar as vontades individuaes, e generalizar-se apenas pela evidencia persuasiva das suas vantagens, gradualmente, facultativamente, espontaneamente.
E' o mais notavel exemplo de legislação experimental, que se conhece; e a sua rapida carreira, a seducção que tem exercido entre as nações mais progressistas, a sua invasão crescente nos costumes e nas leis dos povos mais liberaes, sem o menor auxilio coercitivo da autoridade social, constitue a mais eloquente demonstração da sua superioridade singular, da vitalidade que anima essa instituição e dos seus destinos cosmopolitas.
Este methodo de subordinar a implantação das reformas á lei gradativa da experiencia, quasi desconhecido na Europa, é, pelo contrario, divulgadissimo na Australia, nos Estados Unidos, no Canadá, nos povos, em summa, do novo e do novissimo continente. «As leis, segundo os systemas dominantes da politica empirica, não se elaboram nem se aperfeiçoam por experiencias gradativas: improvisam-se, para bem dizer, tornando-se, de um dia para outro, obrigatorias a milhões de cidadãos e em todas as regiões do Estado, sem se levar em conta a differença das condições locaes. A essas outras nações, pelo contrario, repugna a idéa de fazer uma lei, que não seja realmente a expressão da vontade commum. Por isso as melhores leis, no sentir dellas, são as que, por espontanea imitação e convicção geral da sua utilidade, se propaga pouco a pouco de um a outro Estado, como o regimen Torrens.» (E. COPPI: La legge sulla proprietá fondiaria in Tunisia e il sistema di Torrens.)
Aventado, em 1856, na Australia meridional, ao inaugurar-se alli o governo parlamentar, pelo deputado Robert Torrens, um dos bemfeitores da civilização contemporanea, convertido em lei por acto de 27 de janeiro de 1858, e posto em execução aos 2 de julho desse anno, esse regimen, por via de experiencias graduaes e espontanea imitação, penetrou na colonia de Queensland em 1861, na Victoria e em Nova Galles no anno immediato, e dahi a doze (1874) na Australia occidental. Depois, da Australia se communicou, em 1863, á Tasmania, em 1870 á Nova Zelandia e á Columbia ingleza. Abraçaram-n'o, mais tarde, as ilhas de Fidji (1877), o Estado de Iowa, na federação americana, e, por ultimo, no Canadá, a provincia de Ontario, onde a legislatura o acolheu em 1885, mandando-o applicar á cidade de Toronto e ao condado de York. Ao justificar essa medida, na antiga, dependencia britannica, declarou o primeiro ministro que o pensamento do gabinete era tornar a transferencia da terra tão simples como a do papel bancario e o titulo do possuidor tão firme, tão isento de riscos e tropeços, quanto o do accionista de um estabelecimento de credito ás acções de que é senhor.
Outras provincias canadaenses e outros Estados da União anglo-saxonia promovem a sua adopção, de que tambem se cogita para a India, em Malaca, em Penang, em Strait Settements. A regencia de Tunis, graças á iniciativa do governador Cambon, inspirada na propaganda activa de Ives Guyot, perfilhou, na lei de 12 de julho de 1885, a instituição australiana, de que já se aconselha tambem a applicação á Argelia. (E'. WORMS: La propriété consolidée, 1888.) E Leroy Beaulieu, que percorria a Tunisia, quando se preparava a reforma, declarou que, com a introducção do systema Torrens na regencia, a organização da propriedade territorial alli se avantajava consideravelmente á da França. «A propriedade territorial», disse elle, «terá dest'arte encontrado em Tunis a sua formula real, muito mais nitida, preciosa e completa do que na propria França. Convertido que seja em lei este regimen, não temos duvida nenhuma de que, com a abundancia de boas terras nesta nossa nova colonia, os capitalistas francezes affluirão a ella animada e methodicamente.»
A Inglaterra caminha, bem que lentamente, para a mesma reforma desde 1863. Na Irlanda, esse anno viu organizar-se uma associação consagrada especialmente á realização deste desideratum, a bem do qual o proprio Robert Torrens formulou projecto, levado por uma commissão de altos personagens á presença do vice-rei. Na Gran-Bretanha, ha trinta annos que summidades judiciarias das mais altas, entre as quaes não menos de cinco chancelleres, lord Westburg, lord Cranworth, lord Hatherley, lord Selborne, lord Cairns, empenham esforços por uma adaptação do systema australiano á metropole, onde trabalha neste sentido a Society for promoting the amendment of the law; e varias disposições do acto Torrens teem sido incorporadas ás leis agrarias e territoriaes do Reino Unido, em 1875, 1881 e 1882. Alli, entretanto, «por falta de amplidão e simplicidade nas medidas adoptadas, tão exiguos são os resultados, quão pleno tem sido o bom exito onde quer que se permitte á lei Torrens estabelecer o livre commercio da terra no mesmo gráo em que se opera o escaimbo livre dos titulos industriaes.» E ante a lição dessa experiencia, sempre favoravel quando completa, economistas e administradores de primeira nota não hesitam em advogar a introducção deste principio de transformação e revisescencia no velho organismo da propriedade européa. «Arrojada é a idéa», diz um economista italiano; «carece de suffragar-se com outras experiencias e estudo mais reflexivo; mas a nós tambem não pareceria inexequivel applicar á Europa este systema, que não diverge muito do regimen em vigor nos paizes allemães.»
Entregue ao seu proprio valor, sem auxilio de imposição official que o ampare, o systema Torrens tende a universalisar-se, onde quer que o legislador o offerece ao bom senso do interesse individual. Esse systema, diz o autor da Politica experimental, «substitue o registro dos contractos pelo dos titulos de propriedade. Estes adquirem uma especie de individualidade propria. Na repartição do registro se lhes abre conta corrente: os emprestimos, os arrendamentos e quaesquer outros onus inscrevem-se no talão, assim como no certificado, correspondendo essas duas inscripções uma á outra. Basta um relance de olhos, para conhecer a situação de qualquer propriedade, como basta um simples olhar por um balanço, para se averiguar a situação de um banqueiro. Da essencia da democracia é substituir a coacção pelo contracto, e fazer recahir o contracto antes sobre as cousas do que sobre os homens.» Assim este regimen, ao mesmo passo que tende a realçar o caracter moral da propriedade, espiritualizando-a, por assim dizer, nessa combinação que mobiliza os immoveis, dando-lhes circulação analoga á da renda nominativa, tende simultaneamente a elevar a liberdade individual, no proprietario, pela selecção livre, que lhe deixa, do systema a que ha de acolher os seus bens. Todavia, ainda não foi lançada á terra, em parte nenhuma, a semente livre da lei Torrens, que dentro em pouco não cobrisse a maior parte do solo.
Desse facto nos trazem provas exuberantes os inqueritos effectuados na Inglaterra. «O registro dos titulos é quasi universal», dizia, em 1879, ante uma commissão da camara dos communs, sir Arthur Blyth, agente encarregado da execução da lei Torrens na Australia meridional; «por uma transacção sobre escripturas, encontrareis mil celebradas sob o Real Property Act. E' curiosidade rara achar alguem, que não proceda assim. A um individuo, que pretendesse tomar-me dinheiro por emprestimo, as minhas primeiras palavras seriam: «Sob a lei Torrens, não?» E depois: «Não careceis de advogado, creio eu?» Provavelmente a resposta seria: «Não» Em consequencia, dir-lhe-hia eu: «Vireis commigo ao registro. Haveis de ter comvosco o vosso certificado.» Encheria então um escripto de hypotheca na estação do registro, onde ha vias impressas desses actos, e, satisfeitas alli as formalidades, entregando-a ao official, perguntar-lhe-hia: «Estará prompta amanhã?» N'outros casos a operação é ainda mais simples. Nas demais colonias a lei Torrens é tão popular, quanto na nossa. Nas folhas de Sydney, os annuncios de venda de terras rematam constantemente pela menção da sua matricula sob esse regimen.»
Cerca de 15 % das terras alienadas pela Corôa antes da lei Torrens, (depunha, em 1880, respondendo á circular de lord Kimberley, o official do registro geral de Queensland) estão hoje submettidos á acção dessa lei. «A quantidade alienada assim, daquella data em deante, sobe a 3.826.634 geiras, que, addicionadas ás inscriptas á solicitação dos interessados, perfazem 98 % de todas as terras alienadas.» O official do registro geral na Victoria attestava achar-se já inscripta sob a lei Torrens cêrca de uma oitava parte de todas as terras existentes na colonia, registrando-se titulos de todos os generos, desde os mais simples até aos mais complicados, e de todos os valores, desde 5 até mais de 100.000 libras. «Raras são as questões concernentes á transferencia de propriedade territorial, em que esta repartição não haja de intervir», dizia o official do registro da lei Torrens em Nova Zelandia. O de Nova Galles Meridional declarava: «Tão bem assegurada se acha a popularidade deste regimen, a tal ponto se acostumou o publico a lidar com os nossos certificados, tamanha é a sua confiança no valor infallivel delles, que em geral não se admitte transacção sobre propriedacle, cujo titulo não esteja registrado sob o systema Torrens.» O funccionario incumbido desse serviço na Tasmania respondia: «Dentro em breve os contractos sobre a propriedade real correrão, em sua maioria, por esta repartição, que já se póde considerar, hoje em dia, como o cartorio geral dos actos de transmissão da propriedade immovel na colonia.» (ROBERT TORRENS: Transfer of Land by Registration, pags. 26, 27, 54 e 57.)
A lei Torrens, depunha, em 1872, o Recorder of Titles na Tasmania, «é já uma instituição consolidada, cujas vantagens especiaes e relevantes são absolutamente reconhecidas pela communidade.» (Return on Registration of Title in the Australasian Colonies, p. 138.) «Não ha questão», affirmava, em 1881, M. H. Gawler, solicitor junto aos commissarios da lei Torrens na Australia meridional, «quanto ao perfeito bom exito deste systema: negocia-se com a terra, graças a elle, com a mesma facilidade e segurança que com os papeis de credito na praça.» (Further Return on Registration of Title in the Australasian Colonies, p. 5.)
Deixada, pois, á mercê da espontaneidade dos interesses, a lei Torrens propaga-se victoriosamente por toda a parte onde a não mutilam, onde a não aleijam, onde lhe não enxertam elementos adventicios, onde o legislador respeita a plenitude do seu systema, e o autoriza sem reservas mesquinhas. Submettido a esse severo criterio, como legislação experimental, sahiu triumphante da prova.
A tres principios cardeaes póde reduzir-se toda a economia da lei Torrens: «1º Instituição de um processo expurgativo, destinado a precisar a propriedade, a delimital-a, e fixar de modo irrevogavel, para com todos, os direitos do proprietario, authenticando-os em um titulo publico; 2º Creação de um systema de publicidade hypothecaria, adequado a patentear exactamente a condição juridica do solo, com os direitos reaes e gravames, que o onerarem; 3º Mobilização da propriedade territorial mediante um conjuncto de alvitres, convergentes a assegurar a transmissão prompta dos immoveis, a constituição facil das hypothecas e a cessão dellas por via do endosso.» (ALFRED DAIN: Le systéme Torrens, pag. 11.)
Obvia é a excellencia deste systema em todas as suas applicações: quanto á matricula dos immoveis, á transferencia delles e á constituição dos direitos reaes.
Tem por caracteristico essencial esse regimen o ser facultativo. Póde o proprietario da terra elegel-o, ou deixar-se ficar sob a legislação commum. O individuo, porém, que deliberar adoptal-o, começará por fazer traçar a planta de sua propriedade, que, junta a um memorial declarativo do estado do seu dominio, especificando os direitos e onus correspondentes, apresentar-se-ha, em petição, ao official do registro, a quem incumbe submettel-a a despacho. Para proceder a essa diligencia, não necessita o proprietario de conselheiro profissional. A repartição do registro proporciona-lhe formulas impressas, de que basta encher os claros; eliminando-se assim o concurso dispendioso de advogados e notarios, dos quaes, na Australia, em geral se prescinde nessas transacções. Reconhecida a procedencia dos titulos, onde se estriba, a pretensão do requerente, abre-se o processo de expurgação, destinado a franquear aos prejudicados os meios de opporem-se á inscripção, quando o peticionario allegar falsos direitos á propriedade alheia. A opposição tem o seu curso regular, breve, simples, mas seguro, rodeado de todas as garantias. Si prevalece, deixa de effectuar-se a inscripção requerida. Si não, procede-se a ella, por uma combinação tão singela, quão habil e efficaz. Para a levar a effeito, o official do registro redige dous certificados perfeitamente identicos num livro de talão. Em cada um delles descreve o immovel, referindo-se ao mappa, e consignando todos os encargos, que vincularem a propriedade. Dessa duplicata uma via conserva-se na repartição, constituindo a Matriz, o grande livro da propriedade territorial. O outro exemplar entrega-se ao proprietario, a quem servirá de titulo.
Este documento goza, no systema Torrens, de um valor supremo contra todas as impugnações ulteriores. Uma vez assegurada assim, a propriedade torna-se absoluta e indisputavel. O Estado afiança a certeza juridica do certificado, provendo, mediante indemnização pecuniaria, ás reclamações, que de futuro se possam levantar fundadamente contra a legitimidade dos direitos do possuidor do titulo conferido pelo registro Torrens. «O proprietario de um titulo inscripto», observa o professor Gide, «não tem que se inquietar com o passado. Os adquirentes, como os credores hypothecarios, acham-se igualmente garantidos. A segurança é completa, assim para o proprietario, como para terceiros.» (Bulletin de la Société de Léqislation Comparée, 1885-86, vol. XV.)
A indestructibilidade do titulo constitue, manifestamente, um dos caracteres inestimaveis do regimen australiano. Na incerteza sobre o direito de propriedade territorial está uma das influencias que profundamente a depreciam e um dos embaraços que organicamente se oppoem á sua mobilização. A segurança estribada num titulo de dominio irrevogavel habilita o proprietario a não recuar ante os maiores sacrificios para a exploração da terra, e attrae para ella as ambições do capital, livre por esse meio dos riscos que ordinariamente o deteem ante a perspectiva de litigios embaraçosos e arruinadores, como os que flagellam a propriedade immovel. Nos termos da legislação commum, a firmeza da propriedade pende indefinidamente das questões armadas pela malevolencia, pelo despeito, pela cobiça, carecendo sempre de um processo dispendioso, para se defender, toda a vez que a oppugna. No regimen Torrens desapparece radicalmente a possibilidade eventual da contestação, affirmando-se de uma vez para sempre o direito por uma declaração especifica e irretractavel da autoridade do Estado.
Serve-se assim a um grande principio economico, escrevia R. Torrens, «por uma combinação, que traz o incentivo da segurança ao emprego do capital utilizado em beneficiar a terra; e o resultado pratico desta vantagem tem sido additar-se copiosamente a riqueza geral, restituindo-se o valor intrinseco a terras privadas delle por vicios e incertezas technicas emquanto á procedencia dos titulos de propriedade.» (Transfer of Land, pag. 23.)
Como, porém, apreciação humana, por imparcial e intelligente que seja, não póde excluir de todo a possibilidade do erro, importava predispor os recursos necessarios na hypothese da privação illegitima da propriedade infligida ao senhor da terra em beneficio de outrem. Para esses casos se trocou a reivindicação em compensação pecuniaria, e estabeleceu-se o fundo de garantia estipulado no projecto. Em remuneração dessa responsabilidade, que assume, cobra o Estado, com taxa e seguro, a contribuição, extremamente benigna, de dous por mil sobre o valor da propriedade matriculada.
Nem se supponha que essa responsabilidade aventure o Thesouro a riscos superiores ao valor do seguro arrecadado. A experiencia mostra o contrario. Em 152.000 titulos conferidos no espaço de muitos annos pelo registro nas colonias, não se conhece quasi caso do erro. (TORRENS: Transfer of Land, pag. 20.) De 1872 a 1881 a estatistica registrada por Fortescue (Registration of Title to Land, 1886, pags. 74 e 75) é a seguinte:
Australia Meridional - Em 22 annos de lei Torrens, apparece uma indemnização paga, de 80 £. (Fundo: 40.000.)
Queensland - Em 18 annos e meio, uma indemnização de £ 1.500. (Fundo de garantia: £ 11.000.)
Tasmania - Nenhuma indenmização, em mais de 18 annos. (Fundo: £ 3.600.)
Victoria - Em 18 annos de registro, £ 924 desembolsadas pelo Estado em indemnização. (Fundo: £ 61.000.)
Nova Galles Meridional - Quasi 18 annos. Nenhuma indemnização. (Fundo: £ 38.000.) Registraram-se titulos cuja origem remonta a 1795.
Nova-Zelandia - Quasi 10 annos. Nenhuma indemnização. (Fundo: £ 26.500.)
Australia Occidental - Cinco annos. Indemnização, nenhuma.
Total: Tres indemnizações pagas, no valor de £ 2.504, em um fundo de garantia de £ 180.000.
Não é menos simples o jogo do systema na transferencia de propriedade do que no registro primitivo do seu titulo. O proprietario regularmente inscripto, que estiver disposto a vender a sua terra, encontrará, si quizer, no officio do registro, formulas impressas do contracto, que lhe pouparão o concurso dispendioso de notarios e juristas, economizando-lhe tempo e despezas, de accordo com a divisa de Torrens, que costumava caracterizar a singeleza: e celeridade do seu mecanismo, dizendo: «De ora avante bastará saber a regra de tres, para administrar cada um em pessoa os seus negocios.» Apparelhado o exemplar impresso do escripto de transmissão, e instruido com o titulo, o official do registro annullal-o-ha no todo ou em parte, conforme for parcial, ou total a alienação, redigindo novo titulo em nome do adquirente. «Quando o adquirente de um terreno quizer vendel-o», diz Sir R. Torrens, «o registrador geral nullificará o titulo originario, e entregará ao comprador outro, directamente emanado da autoridade da Corôa. Assim se supprimirão todas as difficuldades até hoje inevitaveis no investigar o titulo primitivo por entre a serie numerosa de adquirentes, que chronologicamente se succedem; e, em vez de folhear montanhas de papel, teremos de examinar apenas um documento simples, mas nem por isso menos válido e indiscutivel, pois absolutamente não differe do titulo de concessão inicial.»
A prodigiosa facilidade e a segurança incomparavel deste mecanismo assentam, pois, na unicidade do titulo. «Esse methodo», observa o seu illustre autor, «evita as accumulações de instrumentos de dominio, representando cada propriedade, ou fracção della, em um só documento, no qual o proprietario matriculado possuirá, para as transacções em que entrar, o quadro completo da situação juridica do immovel.» (Transfer of Land, p. 24.)
Dest'arte uma das mais evidentes vantagens do systema Torrens vem a ser que, «assim nas vendas, como nas operações de credito, o multiplo exame das origens da propriedade é feito substancialmente pelo Estado, mediante uma verificação official, mui simples e expedita; pois, invalidando-se os titulos anteriores de acquisição e transferencia, reduz-se a indagação apenas ao titulo conferido ao ultimo possuidor.» (ETTORE COPPI: Gli instituti de publicitá immobiliare e il sistema Torrens.)
Os encargos e arrendamentos da propriedade instituem-se, transferem-se, renovam-se, ou extinguem-se mediante simples averbações no titulo e inscripção della no registro. Nas hypothecas o proprietario hypothecante retem o seu titulo com a nota certificativa do onus estabelecido. Torna-se deste modo impossivel a minina fraude; porque o documento da propriedade é, ao mesmo tempo, o quadro dos compromissos que a gravam. «Nenhuma parte deste systema», diz Robert Torrens, «tem actuado mais beneficamente, em relação aos interesses geraes. E' caso comesinho ver consummar-se uma hypotheca no espaço de uma hora, mediante a despeza de dez a vinte shillings.» (Transfer of Land, p. 24.) «Celebram-se hypothecas», depunha, em 1880, o Registrar General da Columbia ingleza, «com a mesma rapidez, com que na Inglaterra se transferem acções de bancos; bastando uma busca de cinco a dez minutos, para se averiguar perfeitamente a situação de qualquer titulo registrado.»
Calculem-se agora as maravilhosas vantagens deste systema, na limpidez, na instantaneidade, na segurança das suas operações, confrontado com o systema actualmente em uso entre nós para a transmissão da propriedade e as negociações que sobre ella versam. «Este regimen, pela sua fallibilidade, pelo seu custo, pela sua lentidão, pela sua complexidade, pelos embaraços que o obstroem, não corresponde ás exigencias de uma epoca essencialmente commercial como a nossa, e deprecia gravemente o valor natural do solo. Ora, todas essas inconveniencias teem sua origem commum no caracter retrospectivo, ou dependente, dos titulos de dominio, no regimen em vigor. Numa cadeia como essa a resistencia do todo não é maior que a do mais fragil dos seus elos. Cada contracto novo acarreta mais um elemento de incerteza. De cada vez que se tem de transigir sobre a propriedade, faz-se mister excavar pergaminhos de antepassados, e preparar um transumpto dos actos relativos ao immovel durante os ultimos quarenta annos. Dahi a morosidade. Mas um tal trabalho, pelas suas difficuldades peculiares, só se poderá confiar a technicos especial e dispendiosamente educados nesses assumptos. Dahi o dispendio. O primeiro remedio, pois, a tamanhos males deve ter essencialmente em mira extinguir o caracter retrospectivo dos titulos de propriedade, estabelecendo um processo de transmissão, em que as transacções sobre ella não originem complicações novas.» (R. TORRENS: Transf. of Land, pag. 17.)
Varias preocupações oppoem-se, porém, á adopção do systema Torrens entre nós. Mas nenhuma dellas se sustenta, si as considerarmos com attenção, em face da experiencia concludente que o illustra.
Objecta-se aqui, como já se objectou na Inglaterra, contra a praticabilidade desse systema neste paiz que o bom exito de semelhante innovação nas colonias australianas tem alli a sua causa na ausencia de duvidas sobre os titulos de propriedade, em regiões onde a terra passou recentemente das mãos da Corôa para as dos colonos, após cuidadosas demarcações officiaes. Mas a verdade é, que essas medições, na Australia, são extremamente incorrectas, e, longe de aproveitarem como preliminar á execução da lei Torrens, «constituiram, pelo contrario, o mais serio embaraço ás operações effectuadas sob o seu regimen.» (TORRENS: Transfer of Land, p. 30.) O cadastro official da Australia, attesta outra autoridade respeitavel, «como auxilio ao registro Torrens, é mera invenção dos inglezes; pois esse cadastro tem sido, na realidade, um dos maiores obstaculos á generalisação do novo systema. «(BRICKDALE: Registration of Title to Land, p. 21.) No mesmo sentido se enuncia o Registrar General da Nova Zelandia (Further Return ou Registr. of Title in the Austral. Colon., p. 98), o commissario dos titulos na Australia Occidental (lb., p. 101) e o da Australia Meridional. (lb., p. 6.)
Outros recuam, vendo embaraços inextricaveis na antiguidade da origem dos titulos de propriedade, em um paiz onde muitos delles teem o seu ponto de partida em tempos mais ou menos longiquos. A esses respondo Torrens que os titulos registrados na Australia remontam, em grande numero, a mais de sessenta annos de data, e, parte pelo descuido nos antigos contractos, parte pela frequencia das alienações de propriedade nos paizes novos, muitos desses titulos offerecem complexidades e mysterios não menos emmaranhados que os do dominio territorial na propria Inglaterra. Disso dão testemunho os relatorios officiaes publicados sobre o assumpto. (BRICKDALE, p. 17-9.) Demais, accrescenta o eminente reformador australiano, retorquindo o argumento nos mesmos termos em que o fez, em 1879, lord Cairns (Report, Evidences and Appendix of the Select Committee on Land Titles and Transfer, n. 2.870), «a existencia de titulos como esses não é objecção contra a medida; antes constitue razão concludente, para se franquear á grande maioria dos titulos claros e liquidos um regimen, que os preserve de cahirem, com o tempo, em condições semelhantes.» (Transf. of land, p. 31.)
Em presença destas considerações, que a novidade do assumpto nos forçou a alongar, não hesitamos em aconselhar-vos a transplantação desta reforma para o nosso torrão patrio, onde encontrará certamente as condições mais favoraveis de acclimação, logo que os interessados lhe comprehendam a influencia bemfazeja.
Reduzindo-o aos seus traços capitaes, o regimen proposto assignala-se caracteristicamente por estes predicados:
1º Faculdade aos proprietarios de acceitarem-no, ou permanecerem no direito commum;
2º Registro de todos os direitos, que gravarem o immovel, para a constituição delles entre as partes e a sua acção contra terceiros;
3º Garantia do Estado aos proprietarios inscriptos e, em consequencia, responsabilidade pecuniaria do Thesouro para com os prejudicados por erros na matricula, ou na entrega dos titulos;
4º Publicidade real, e não pessoal, isto é, instituição de um grande livro das terras, onde cada propriedade, em vez de cada proprietario, tenha aberta a sua conta;
5º Entrega a cada proprietario de um certificado com o valor do titulo, renovavel em cada transferencia da propriedade;
6º Facilidade aos proprietarios de constituirem emprestimos, mediante penhor do titulo, consignado em garantia ao mutuante;
7º Substituição da incerteza pela segurança, da obscuridade e do palavreado pela brevidade e pela clareza;
8º Reducção de avultados gastos a um desembolso minimo, e abreviação de mezes a dias no tempo despendido;
9º Protecção ás transacções sobre a propriedade territorial contra a generalidade das fraudes;
10º Restituição do seu valor natural aos titulos de propriedade, depreciados pela interdependencia das escripturas successivas de acquisição e transmissão.
O decreto, que ora vos apresentamos, delineia essa instituição, que o regulamento desenvolverá.
Longo e penoso foi-nos o labor da adaptação, attenta a difficuldade extrema de eliminar as idyosincrasias inglezas, que inçam a lei Torrens no seu contexto original. Mas a attenção e consciencia com que procedemos, atravez das muitas transmutações por que passou o nosso trabalho, até se formular neste projecto, inspira-nos a confiança de que elle corresponda ao pensamento da benefica reforma, cuja realidade agora depende apenas do vosso assentimento.
Capital Federal, 31 de maio de 1890.
RuY Barbosa.
Manoel F. de Campos Salles.
Francisco Glicerio.